Duplo sentido

Fazia muito tempo que não nos víamos e outro dia fui até o colégio velho, ao lado do fórum, resolver um problema e na volta nos encontramos. Beijos e abraços, e, sentados no meio-fio, começamos a papear tentando reviver bons momentos de nossa infância e adolescência.

Àquela época, sempre que podíamos, íamos a festas e por lá nos encarregávamos de brincar de namorados e, cá prá nós, ela era um monumento. Sabe aquela garota magrinha, cintura fina e corpinho bem desenhado? Pois é, era desse jeito. Suas curvas eram de deixar qualquer motorista louco (você entenderão). E o charme? Não! Aquilo era um pedaço de mau caminho.

Mas vamos voltar ao que interessa. Papo vai, papo vem e a saudade parecia não ter fim. Em meio às recordações e às fantasias de outrora, fomos viajando rumo ao passado em busca de nossas histórias comuns. Lembranças boas, outras nem tanto. Porém, rimos muito daquelas tardes, na caixa d'água onde nosso lazer se resumia a carrinhos e latas e a esperar pelo ronco que vinha da tubulação que trazia a água. Naquele tempo, o Paranoá não tinha água encanada nas casas e os chafarizes é que salvavam a pátria. Hoje a água chega na torneira e para conhecer essa história antiga é preciso conversar com os veteranos.

Mas é claro que tinha também os namoricos (a moçada de hoje não sabe o que é isso. Aliás, a rua onde buscávamos água, naquela época, é a mesma em que hoje funciona a escola onde se deu esse maravilhoso encontro). Tempinho bom e que não volta mais.

De repente nossa emoção foi interrompida. Um caminhão descia a avenida e escutamos o assistente gritar para o motorista, ao passar por nós:

– Bota na banguela! Bota na banguela!

Não entendi quando Sílvia pegou do chão uma pedra e atirou no caminhão esbravejando palavras de calão.

– Vai botar na mãe seu babaca!

Saiu correndo atrás do veículo tal qual uma cadela louca. Jogava pedras, xingava e bufava, num ódio descomunal. Eu fiquei ali parado sem entender bulhufas da reação tão furiosa de minha amiga.

Quando voltou, cansada e quase botando as vísceras para fora, me explicou o motivo de tanta ira.

– Que cara babaca! Não respeita as pessoas.

– O que houve? Qual a razão dessa bronca toda?

– Você não ouviu ele zombar de mim?

– Como?!

Foi aí que ela me mostrou os dentes frontais superiores todos arrancados. Havia sofrido um acidente e os perdera. Estava em tratamento. Na minha empolgação do reencontro não tinha percebido nada de “anormal” em sua boca. Ao vê-la naquele estado segurei o riso e só então percebi que ela estava realmente "banguela".

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 16/08/2010
Reeditado em 18/10/2023
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