A lenda da casa colorida II - Alma

A lenda da casa colorida II

Sandra Ravanini

Alma

...É verão!

A tempestade chega trazendo os pernilongos famintos de líquidos, sedentos de águas vermelhas contidas nas veias finas e azuladas dos mitológicos filhos de Edem.

Na hora do sono, os bandidos voadores atacavam todos os viventes da casa colorida, nem mesmo o repelente feito pelo inventor do mundo tinha o poder de afugentar os pernudos noturnos.

Alma tinha oito anos de idade quando, em prantos por ter perdido sete palitos de dentes de sua coleção, desconfiou pelo método da adivinhação que fora adotada.

A dúvida insurgente, juntada a alguns pedaços de papiros trazidos pela ratazana que vivia no telhado, somada às indiretas e aos achaques de seus irmãos, mais a coceira de mil picadas do ontem, trouxe à tona fragmentos de conversas escutadas por acaso e ecoadas na cavidade auricular.

O quebra-cabeça retalhou a paz da alma.

Partindo desses trechos úmidos e mais os boatos da fábrica, presumiu que foi encontrada dentro de um balde comprado há muito tempo no mercado perto do hospício.

Os antigos pedacinhos de papéis relatavam a chegada de uma criança quase morta e invisível que foi ressuscitada pelo jato da torneira agônica e clorada de Pura, sua mãe, que também adotou uma jibóia asmática e a carregava dentro do peito cedendo-lhe seu ar, fazendo respiração boca a boca no ofídio violáceo e carente, que dividia o tórax de Pura em dois e os seios em três partes quase iguais.

Pura, atordoada com o atraso da faxina, o atraso do relógio e o atraso da vida atrasada, não percebeu a criaturinha deitada em posição fetal dentro do recipiente virgem.

De um sopro de torneira e um susto nasceu a primeira e única criança de proveta concebida dentro de um balde virgem em todo o planeta.

A lenda, já quase ilegível no papiro velho, conta que a boca de Alma era pequena demais, por isso foi amamentada com o suco de beterrabas pingado de um conta-gotas doze vezes ao dia e com o leite da mesma ratazana do telhado.

Foi registrada, a residente do paraíso, em data posterior; por isso ninguém sabe ao certo o dia correto de seu nascimento.

Também não existem fotos para atestar o contrário do que a lenda conta.

A rata — leitora assídua de livros antigos —, uma beata de grande coração, viu a sua prole de filhos serem exterminados, um a um, por Lúcido, o atirador.

E mesmo passando por tamanha tragédia familiar, não perdeu a fé na raça humana; sua missão, dizia ela a Alma, era transmitir o dom do perdão aos homens sem coração, ajudando-os a encontrar o órgão vital deles, dentro deles.

Palavras de uma rata que tinha um coração repleto de amor e redenção dentro do pequeno corpo cinzento com pêlos grisalhos.

Alma tinha um furo no meio da testa.

Previa o futuro usando de um truque comum — não falar, apenas ouvir —, acertando assim todas as dúvidas das anciãs com medos mortais da morte.

Dava respostas a todas as virgens fogosas e solteironas, inclusive arrumando casos e acasos para as mais encalhadas senhoritas já desesperançadas de um amor, marido ou qualquer monstro que as tirasse da fila de espera e da boca do povão — ficar para titia era a pior desgraça da época.

Antes da cada consulta, uma pessoa falava da vida da outra, transformando a clarividência em um ato obsoleto — a boca alheia carrega a verdade de cada próximo — mesmo que distante uns de cada um. As bocas abertas eram as bolas de cristal se chocando contra o hálito das verdades alheias e suposições do próximo.

Crença e ciência comprovadas e descomprovadas de acordo com alguns erros de análise cometidos durante o processo de transmutação e previsão, sujeitos à reavaliação conforme os esgares de sobrancelhas da consultada à consulente, sempre atenta e pronta a transfigurar o limite natural no além do amanhã.

Assim, mesmo errando hoje, a semana seguinte assinaria as previsões de Alma, porque contra a boca do povão ninguém pode.

Alma era manca, caía com a naturalidade dos desequilibrados e levantava lamentando a falta de cálcio, o leite fraco da rata, excomungando as suspeitas de ser filha ilegítima, sempre falando baixo porque não enxergava bem e tinha a impressão de ver alguém observando a sua sombra.

Por pouco escapou de ser anã.

O dia em que Alma levou um tiro de espingardinha de chumbo justamente na bunda — roubando jabuticabas nas cercanias do hospício —, nasceu a primeira mentira, fruto das frutas roubadas — semente da força da verdade mortal exposta ante a mira de uma espingarda empunhada e rodeada por três enormes cachorros cabeçudos prontos a devorar os ossos sem carnes ao comando do dono.

A morte tem gosto de fruta e cheiro de pólvora.

A situação detonou o relógio nas estranhas de Alma, além do ronco, verdades e mentiras foram paridas na mesma hora e depois, na disenteria afrouxada por ter escapado de ter levado o tiro alguns centímetros à esquerda, no centro do elo livre do conjunto corporal.

Mentiras e verdades gêmeas, filhas da alma.

A súbita onda de ira e dor recaiu sobre o dono do pomar afrodisíaco — vítima que era, passou a ser um quase assassino mesquinho, atirando em almas famintas que por ali caminhavam ou descansavam e, por conseguinte, comiam as frutas viçosas.

Com a odiada calça de camurça velha, reformada pela terceira vez, vestimenta de cor indefinida devido às goteiras de uma tempestade mais forte e algumas gotas de alvejante no balde errado, agora toda esfarrapada, Alma, num gesto impensado, agrediu verbalmente o egoísta senhor Oko, proprietário do local.

Alma, humilhada, foi levada ao curandeiro local já elaborando a segunda mentira, recém-nascida quase à mesma hora em que a irmã primeira: lutara contra um exército de pensamentos carnívoros durante a meditação matinal tropeçando nas linhas do raciocínio e nas linhas da bandeira da aranha — in memoriam... que a terra faça jus à peçonhenta sem lápide e que jamais seja esquecida nem mesmo vingada em nome da paz.

Estava toda estrepada!

Pura acreditou na história e a odienta calça de camurça virou outro pano de chão; uma das partes da perna da calça boca de sino foi convertida em um odiento tapetinho de banheiro.

Pouco tempo depois, Alma levou outro tiro de espingardinha de chumbo dado pelo seu irmão Lúcido, o atirador — confundiu as pernas de Alma, que estava pendurada no muro, com o alvo: uma lagartixa gigante que habitava sua mente e ria do seu intelecto revolucionário.

Talvez fizesse parte dessa idéia um complô contra a vida da alma de Alma, que divergia dos métodos fomentados pelo caráter de Lúcido, o atirador, um eterno rebelado.

Lúcida, Alma parou de comer risos com medo de estarem envenenados por algum pó sonífero e foi enfraquecendo... enfraquecendo.

01/11/2008