Na rua Adoniran Barbosa

Desde que saí de São Paulo em meados da década de 80 havia me ficado um peso no peito: eu não conhecia a rua Adoniran Barbosa. Sabia que era uma travessa da avenida Brigadeiro Luís Antônio, lá mais pra baixo, perto do centro, mas eu não conhecia. Quando eu ainda morava na capital, eu trabalhava e corria afoita, sempre com uma pressa sem par. Voltava tarde para casa, era ônibus, metrô e um tempo gasto sem fim. Aos finais de semana eu estava quebrada, louca pra ficar em casa, alguma visitinha para os tios, alguma exposição em algum museu, e o tempo acabava. Aos sábados eu terminava as aulas às 6 da tarde e aos domingos eu ainda dava aulas pela manhã no pré-vestibular. Chegava em casa, almoçava invariavelmente o italianíssimo macarrão com frango e eu logo me colocava a redigir o jornal que circularia entre os alunos: eu tinha que ficar cavando as atualidades... tempos ainda sem internet. Nada on line e o trabalho era muito maior e mais desgastante para qualquer professor, principalmente de História.

Então foi proposital: eu iria conhecer a rua do poeta mais popular da cidade, o nome que foi sugerido com insistência junto à prefeitura pelo Primeiro-Ministro do Bixiga, o sr. Walter Taverna, que luta avidamente pela defesa da memória do bairro mais italiano da metrópole. O Bixiga carrega na sua história uma longa tradição do século XIX, quando os primeiros italianos começaram a chegar a São Paulo, provenientes de um país marcado em grande parte pela pobreza e pela fome. Sem recursos e com a esperança de “fazerem a América”, vieram para trabalhar nas bem-sucedidas fazendas do café do oeste paulista. Nem todos conseguiram sobreviver à dura exploração e humilhação que os latifundiários lhes impunham. Os tantos que abandonaram o campo foram para a capital se estabelecer. Mais tarde reduto de negros e de nordestinos também, o Bixiga é muito especial e poético. Com a sua igreja de Santa Acheropita, ostentando pureza, luta, sonhos, dores e fé. As cantinas tradicionais e que produzem as melhores comidas do mundo – eu tenho certeza disso. O Bixiga é capaz de provocar em qualquer pessoa o complexo ato de fazer as pazes com o passado, caso o mesmo não tenha sido bem vivido ou compreendido.

Era janeiro desse ano. Tempo quente e ensolarado. Estávamos a postos: sairíamos de casa com destino certo. Foi teatral! Meu filho e eu descemos de ônibus na avenida Paulista e fomos descendo a Brigadeiro com muita calma, curtindo cada momento, cada detalhe. Afinal, seria um encontro com o tempo, uma espera de mais de duas décadas e triunfalmente eu andaria por ali, olhando para todos os lados, saboreando os detalhes, os rostos, quem sabe, alguma conversa com algum morador. Alguma coisa haveria de acontecer. Os passos foram lentos, sentidos e com uma enorme vontade de abraçar a alma – se pudesse – daquele senhor que cantou a cidade nas suas transformações, na urbanização e com todos os problemas que a verticalização de uma cidade impõe.

Pronto! Chegamos! Eu sabia que a rua era pequena. O seu Walter tinha me avisado. Mas era de uma calmaria tamanha que nem parecia uma quebrada da Brigadeiro! As casas naquele estilo dos anos 60, muitas sem uma garagem. Sobrados modestos, na cara que eram de apenas dois dormitórios. Era visível a história cravada naquela rua tão pequena, sem passantes e nenhuma buzina a nos obrigar a apurar o passo. A rua nos convidava a parar e a olhar para todos os cantos, todos os detalhes. Alguém, numa das casas, assava um bolo de fubá. Da calçada eu sentia o odor. Só faltava o café bem quentinho. Seria café Moka ou Seleto? Não importa! O bolo não desceria a seco. No mínimo, poderia ser saboreado ao som de um “Trem das Onze”. Será que alguma comadre chegaria para uma boa conversa? Eu sei que aquela rua me tocou profundamente a alma de um tempo que eu pouco vi. Eu não conheci uma saudosa maloca, não conheço o Jaçanã, nem o Arnesto ou o Nicola. Eu conheço o viaduto Santa Ifigênia, bem como a Eugênia conhecia. Eu conheço o Bixiga, a sua escadaria, a comida e as suas memórias. Conheço a Praça Dom Orione, com o busto do Adoniran e tirei fotos ali, abraçada com a sua “estauta”. Acariciei aquele rosto em bronze que um dia havia sido roubado e foi parar no Brás...

Mas a rua Adoniran Barbosa ficou comigo, quente na alma, como um espaço afetuoso de uma São Paulo que não é mais.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/08/2010
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