Enfim, só

Eu não o vi chegar e não tive tempo de buscar o batom rubro que deixei sobre a escrivaninha, onde em tempos pretéritos escrevi um texto falando de matrimônio.

Aquele dia não era um dia qualquer, era para ser um dia de festa. O vestido branco de rendas importadas dava ao corpo um molde sensual, mostrando em detalhes uma silhueta perfeita. A maquiagem estava irretocável, não fosse a sombra dos olhos, que escondia uma dor fina que feria a alma, mas a dor era só o prenuncio do fim, daí não ter gritado para o mundo, num pedido de socorro. As flores que foram colhidas já estavam semimortas e não exalavam mais nenhum perfume. O rosto estava cansado. O corpo pedia descanso para dormir em paz. Adormeceu por uns instantes e sonhou, sonhou com um belo príncipe que dizia para que ela acreditasse em todas as sandices do poeta que existe em seu interior, e que depois compusesse uma canção que remetesse ao passado onde todos os meninos e meninas corressem em direção ao arco-íris, para que pudessem ler, cada um a seu modo, o que existe de fato na alma dos mortais e porque os homens e mulheres, tão diferentes que são, prometem uns aos outros viverem juntos até que a morte os separe. Depois que despertou do sonho, sentiu-se confusa, intrigada com o silêncio que vinha do quarto, onde devia dormir o amor que estaria a desposá-la. Essa história não ficou registrada nos arquivos sobre a escrivaninha. O papel desbotou e com ele o drama se perdeu com o apagar das luzes e também cessaram os aplausos, mas a lembrança trágica daquele dia ficou encardida na mente ensandecida da infeliz casadoira.

É só o que sei desse triste relato. É que estou com um pequeno transtorno de identidade, por vezes me vejo sem entender muita coisa, misturo os sonhos, às vezes me vejo do outro lado do espelho, mas não consigo manter o diálogo, falo com ele, ele apenas observa as minhas tolices. Esperei pela madrugada, olhei inúmeras vezes o vestido sobre a cama, a grinalda que veio de longe estava ali, fazendo par a um lindo par de brincos de esmeraldas, prontos para compor aquele quadro da tragédia que se desenhava. O silêncio do quarto continuava a incomodar, tomei a decisão, empurrei a porta que estava cerrada e acendi a luz e lá estava uma cama vazia, uma mala sem roupas e no banheiro apenas o cheiro do seu perfume. Sem tempo de voltar ao escritório, e no desespero que apoderara de mim, apanhei no armarinho outro batom, esse de uma cor mais suave. Ai escrevi no espelho em letras cursivas: “Por que meu amor? Eu jurei morrer junto a ti.”