Coisas da modernidade

Coisas da modernidade

Texto de Aparecido Raimundo de Souza.

O Júlio César ganhou um celular de última geração. Passa fax, navega na Internet, manda torpedos, armazena 1.500 números de telefone, busca rápido qualquer coisa no menu principal, funciona como despertador, toca um monte de musiquinhas diferentes, possui mapa com guia completo de localização instantânea de ruas e logradouros, além de oferecer a previsão do tempo, horóscopo, mapa astral e a cotação do dólar, em viva voz. Tem 200 jogos, TV a cabo e bina. O Júlio, com toda essa tecnologia nas mãos, só deparou com um probleminha na hora de usar: a maravilha não funciona nem por reza braba.

Já o do Roberto vem com dispositivo de segurança que chama a atenção do dono se, por acaso, este o esquecer em algum lugar. Possui antena parabólica e 299 toques diferentes de campainha. Fala fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, russo, japonês, árabe e até javanês. Escreve textos e cartas de amor, conta piadas, chora em velórios, ri em festinhas de crianças, goza quando vê moça de baby-doll, toca violão, bateria e mais outros 50 instrumentos. Único inconveniente apontado até agora pelo Roberto: a coisa, apesar de todo o requinte, não completa as ligações, deixa a criatura no meio de um bate-papo falando sozinha e o camarada no outro extremo da linha, com cara de tacho.

O do Augusto oferece os mesmos serviços que o do Júlio e o do Roberto juntos, e mais: imprime lista dos principais restaurantes, acumula 100 tipos de pratos diferentes e aponta as melhores bebidas, como vinhos e champanhes importados. Escolhe as roupas que seu senhor deve usar e reza missa com padre Marcelo em latim. Traduz livros estrangeiros, abre uma tela com fundo azul mostrando uma imensidade de casas de shows e, de roldão, as melhores badalações da noite. Vem com carteira de motorista, brevê de piloto de avião, tira e envia fotografias instantaneamente, possui blindagem total de proteção para o teclado e o display caso tome uma pancada ou caia no chão. Defeito principal detectado pelo Augusto: forte interferência quando se está tentando entabular uma conversação séria. O barulho (tipo chiadeira) chega a ser tão enervante que o infeliz acaba desligando e deixando de lado o assunto, ou procurando o primeiro orelhão, já que jogar para cima não resolve o problema, porque o aparelho é a prova de tombos. E pior: caso o sujeito perca a paciência e resolva arremessá-lo do alto de um prédio, por exemplo, um pequeno pára-quedas cor de rosa se abre automaticamente num compartimento junto à bateria, amortecendo a queda.

Essas coisas da modernidade são assim mesmo. O modelo que adquiri recentemente, para minha filha Dorinha, surpreende, a começar pelo preço. É tão pequeno que precisa de lupa para enxergar o tamanho das parcelas. Tem uma evolução acima de qualquer suspeita. É protegido contra assaltos e seqüestro-relâmpago. Se, por acaso, for furtado ou roubado, volta sozinho para casa. A dinâmica é tanta que seleciona e sugere namorados, mostra saldos de contas correntes e de cadernetas de poupança, efetua pagamentos de água, luz e telefone, faz caretas para engraçadinhos, oferece pacotes de minutos e embrulho de segundos, caixa postal, siga-me, tecla sap, chamada de espera, despista chatos e inoportunos, late como um cão raivoso, sai correndo atrás quando cruza com gatos, e sobe em banquinhos ao enxergar baratas.

Armazena mil tipos diferentes de informações, avisa se está com fome e se despluga quando quer ir ao banheiro. Não toca em lugares proibidos, como velórios, missas de sétimo dia, salas de audiências, casas de massagens, hospitais, reuniões sociais e vôos domésticos. Obstrui automaticamente todas as funções, por um período de três horas, caso o dono insista em atender a uma chamada no momento em que estiver no trânsito, dirigindo ou na cama, fazendo amor.

Altamente assimilativo, ao receptar uma ligação com notícia ruim, evita que seu proprietário tenha um ataque de nervos, dá conselhos, joga futebol, torce pela Seleção, recita versículos da Bíblia, está equipado para download de aplicativos, tem display colorido, rádio AM e FM, fone de ouvido e capacidade de envio de imagens e vídeo com alta resolução. Declama Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, odeia os programas do Gugu, do Faustão, da Hebe, da Luciana Gimenez, da Adriane Galisteu, do João Cléber e do Amauri Júnior. O programa Falando Francamente, da Sônia Abraão, ele tira do ar e substitui por desenhos do Pica-pau e do Tom & Jerry. Assume postura retrógrada e entra em parafuso, ato contínuo, se alguém o deixar perto de uma televisão ligada no Ratinho.

Dorinha, diante de todo esse progresso da engenharia superavançada, descobriu uma nova fórmula de usar o celular. Uma modalidade, inclusive, não veiculada pelos fabricantes em seus anúncios, nem comentada pelos vendedores das lojas onde podem ser adquiridos. Basta se afastar um quilômetro para fora da cidade, principalmente depois das 20 horas, que do painel aceso desliza um trocinho muito vivo e pulsante. É como se fosse um consolo duro, mas ao mesmo tempo, macio e quente, que ao ser usado faz aflorar, do mais profundo da garganta, uma série de gritinhos de dor misturados a um êxtase de satisfação de ver tudo entrando, rasgando, centímetro por centímetro, as entranhas, contraindo os grandes lábios e fazendo, em parceria com o clitóris e o resto do corpo, o coração acelerar, descompassado, dentro do peito, como se quisesse sair estabanado por todos os poros da epiderme, graças, talvez, à sua flexibilidade, que dizem ser de 180 graus.

Em linhas gerais, o celular é completo. Tão completo que não falta nada nem quando se trata em substituir o homem. Dá uma mãozinha, ou melhor, uma mãozona na hora de trepar, interagindo com o ato sexual em si, e o que é melhor, colocando para fora uma linguagem até então desconhecida no mundo: a do AVC ou seja, Amor Virtual Carnal.

Em face desta experiência ímpar, vivida e sentida no útero, Dorinha concluiu que esse tipo de celular é excelente para adolescentes que nunca tiveram a primeira vez com seus namorados. Observa, ainda, que qualquer menina, com um desses ao alcance das mãos, não corre nenhum risco de engravidar pela boca, contrair doenças sexualmente transmissíveis, tampouco de se usar preservativos. Basta o parceiro, na hora do “vamos ver”, não entrar numa de ficar afobado. Segundo ela, nesses momentos, o rapaz deve procurar introduzir o aparelho no orifício que lhe for indicado e fazê-lo com carinho e destreza, devagar, pausada e compassadamente, observando, sempre, que as pernas da guria permaneçam bem abertas e a sua visão do triângulo e da racha -, ou melhor, da racha no centro do triângulo, ou do olho do cu, se for o caso -, não desapareça. O único temor de Dorinha, com relação a quem vai usar um desses aparelhos é a ansiedade e o nervosismo do sujeito querer enfiar rápido demais ou tudo de vez, e, nesse afã natural que atropela a idade, o parceiro ou a parceira gozarem, e, ao fazê-lo, perderem o controle da situação e o brinquedinho sumir, de vez, lá por dentro sem que depois se consiga trazê-lo de volta, a não ser com a ajuda de um médico especialista em aparelhos atochados em orifícios pouco ortodoxos, o que criaria, para o casal, uma situação bastante delicada e vexatória, além de vergonhosa e humilhante.

O celular de Dorinha é, portanto, idêntico ao que presenteei à Suzana, minha namorada, no dia do seu aniversário. Talvez seja um pouco mais requintado que o de Júlio César, ou mais aprimorado tecnologicamente que o de Roberto e o de Augusto. Refinadíssimo, passa filmes, faz travessuras, anda a cavalo, gosta de Zeca Pagodinho, limpa a casa, cozinha, chama o elevador e sabe mexer com os controles da tela plana de 43 polegadas e do DVD sem precisar ler os manuais, além de vir equipado com GPRS, sons polifônicos e ainda dispor de uma tal de teleconferência para cegos, pernetas e esposas de ministros pré menstruadas.

Possui defeitos? Sim! Fica a maior parte do tempo mudo ou fora da área de cobertura, mesmo que você o cubra com alguma coisa bem picante, como pirão de Lula ao molho de Marcos Valério. Não dá palpites para os números da Mega Sena nem prevê se algum avião vai sair da sua rota e bater na Câmara ou no Senado em Brasília, matando uma porrada de deputados e senadores inocentes antes de chegar ao seu destino, ou onde Bin Laden e a sua turma da Al Qaeda vão atacar da próxima vez. Mas isso não importa muito. Suzana não anda de avião nem joga na loteria. Nem é inimiga dos ratos de colarinho branco, nem quer ver Osama comendo capim pela raiz. Estou feliz pela minha filha e agora também mais contente pela namorada. Ela gostou, melhor dizendo, amou o presente, principalmente depois que teve um papo de pé de ouvido com a Dorinha e o namorado dela.

Por conta dessa conversa, todo dia uma cena se repete dentro da BMW, seja no escurinho do estacionamento do apartamento onde ela mora com os pais, seja na garagem de casa. Fechamos tudo e passamos para o banco de trás. Ficamos nos beijos e nos amassos até que os vidros embacem totalmente. É a partir daí que o bicho pega. Como uma desmiolada, bem puta e vagabunda, Suzana suspende o vestido, pula no meu colo, abre bem as pernas, senta, ou melhor, aterrisa e pede que introduza o aparelho em seu rabo, até o ânus. A criatura, nessa hora, parece que entra em transe como se beijasse a língua do Maluf. Começa, então, a gritar “PT, PT”, (cuja tradução seria Põe Tudo) e a rebolar o traseiro como qualquer vagabunda que tivesse a sua primeira noite no Palácio da Alvorada e a gemer feito uma louca desvairada, ao som ambiente de um cd com a Ave Maria de Haendel. Por precaução, costumo tirar a calcinha, quero dizer, a capinha do celular, e, junto, de roldão, desligar a tecla da bateria: evita surpresas, como a de alguém ligar no meio da brincadeira e, na hora de atender, se descobrir que foi apenas um palhaço idiota que discou, sem querer, para o número errado.

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista.

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 07/09/2010
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