CRÔNICA DA CRÔNICA




     O primeiro requisito da boa crônica reside no estilo leve, agradável, fácil de ser lida de ponta a ponta. Nem agressiva nem bajuladora, e só lhe fará bem uma pitada de ironia. Precisa interessar a todas as idades; à adolescente às voltas com o primeiro namorado e ao avô preocupado com os seus achaques. Nasce num dia e já no seguinte apenas alguns a recordam. Desse destino somente poucas escapam, tão raras que quase todas perdem o vício quando reunidas num livro. O humor lhe impõe rígidas medidas, impedindo-a de chegar ao deboche ou à agressão, e deixando ao leitor completar o que não se precisou escrever. Necessita ser atual, apanhar o fato do dia, ou sua versão, sem o colarinho duro do editorial ou a liberalidade das reportagens de polícia.

      Que é a crônica, afinal?
 
      Examinando os gêneros propriamente literários, notei que a crônica pertence ao grupo dos que não usam qualquer artifício estético entre o leitor e o autor; este fala diretamente ao leitor, em seu próprio nome, explanando os seus pontos de vista; são os gêneros ensaísticos: o ensaio, a crônica, a carta, o discurso, a máxima, o diálogo, o apólogo, as memórias. Os do outro grupo, utilizam artifícios intermediários, como a história no gênero narrativa, os artifícios líricos, a representação dramática.

      O significado tradicional da palavra “crônica” decorre de sua etimologia grega (khronos-tempo): é o relato dos acontecimentos em ordem cronológica. Assim, o termo tem o caráter de relato histórico. É o sentido primitivo, que o aparenta a “anais” e foi esse o sentido que assumiu a historiografia na Idade Média e Renascimento, em toda a Europa, em latim, e depois nas línguas vulgares, inclusive em português, em que produziu algumas obras-primas. Em inglês, francês, espanhol, italiano, a palavra tem este significado: crônica é um gênero histórico; “croniqueiro” e “cronista” designam o indivíduo que escreve “crônicas”. O mesmo em francês: “chronique” e “chroniqueur”.

      Todavia, em português, a partir de certa época, a palavra foi ganhando roupagem semântica diferente.“Crônica” e “cronista” passaram a ser usadas com o sentido atualmente generalizado em literatura: é um gênero específico, estritamente ligado ao jornalismo. Ao que parece, a transformação operou-se no século XIX, não havendo certeza se em Portugal ou no Brasil. Publicavam então os jornais uma seção, via de regra semanal daí Machado de Assis ter adotado o pseudônimo de “Dr. Semana” (para as crônicas de A semana), de comentários de assuntos marcantes (ou que marcaram o espírito do artista) da semana. O uso da palavra para indicar relato e comentário dos fatos em pequena seção de jornais acabou por estender-se à definição da própria seção e do tipo de literatura que nela se produzia. Assim, “crônica” passou a significar outra coisa: um gênero literário de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades do estilo, a variedade, a finura e argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na crítica de pessoas. “Crônicas” são pequenas produções em prosa, com essas características, aparecidas em jornais ou revistas.

      Mas o que  designamos atualmente por crônica é o que, na literatura inglesa, se chama “ensaio”, tipo “familiar”, informal. Se compararmos as características dos tipos, veremos que as da “crônica” brasileira são as mesmas que os ingleses atribuem ao personal ou familiar essay. Isto resultou certamente do uso que se generalizou no Brasil de tornar sinônimos “ensaio” e “estudo”, abandonando-se o sentido primitivo, para o qual foi sendo reservado o termo “crônica”. Essa a concepção que o termo “crônica” adquiriu finalmente em português.

Brasília,  madrugada de 10/9/2010
LordHermilioWerther
Enviado por LordHermilioWerther em 10/09/2010
Reeditado em 11/09/2010
Código do texto: T2489259
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