A Poção Mágica

A Poção Mágica

Foi então que, de repente, do nada, em plena luz do dia numa calçada movimentada, surgiu um homem de idade indefinida, de vestes indefinidas e traços indefinidos. Disse que tinha em seu poder, no bolso do paletó, um frasco inteirinho de poção mágica e que, se eu o tomasse, teria minha vida transformada. Hesitei. Transformações sempre me deram nos nervos.

- Para que serve a poção? Ela me tornará invulnerável? – indaguei.

Ele respondeu, num português castiço e conciso, que a partir do instante em que eu sorvesse a poção milagres passariam a ocorrer, um depois do outro, e que eu finalmente perceberia que eles sempre ocorreram, desde o dia em que nasci, faltou-me, entretanto, uma determinada atenção. A poção me daria isso, essa possibilidade, essa porta aberta. E que uma vez sorvida, de um gole só, eu também poderia ver além e além, veria fatos doces e bons do passado, coisas de que nos esquecemos, do bem querer que tivemos aos outros, dos bons votos e das boas intenções, que nos esquecemos de muita coisa durante a vida, que por conta de alguns percalços esquecemos que cutucamos porque fomos cutucados, esquecemos porque esquecemos ou não demos valor, mas com a poção viria o resgate, porque não somos uma coisa só, somos múltiplos dos múltiplos. E mais, que viver não se trata de ser invulnerável mas antes, da vulnerabilidade absoluta.

Pensei. Muitas pessoas passavam na calçada. Ninguém reparava nesse estranho colóquio.

- Aham...uma poção... Ela me trará a força? – indaguei.

Ele respondeu, num português alinhado e delgado, que a força serve para cavalos arriados, que ela me traria outra coisa, uma coisa mal entendida em nosso mundo, a palavra em si é motivo de desagrado – humildade. Sem humildade – completou ele - não se pode viver uma vida de utilidade ou, com os contratempos, convocar a fé que enfrenta qualquer emergência. A poção é sobre fé.

Hesitei. Então retruquei: você fala sobre coisas que levam a outras coisas.

- Assim é a vida – respondeu ele.

Então me disse, de modo forte e coeso, que temos dentro de nós uma chama que é muito maior do que nós. Ela só vem à tona de um certo jeito, não temos controle sobre isso e não podemos acelerar o processo. Disse que tudo e todos nesse planeta estão no caminho de colocar para fora aquilo que é maior, e que está dentro.

- Ora, então para que a poção? – questionei.

De modo misterioso ele respondeu que ganhar um novo ponto de vista, não raro, é extremamente doloroso.

- Mais doloroso do que desistir? – quis saber, olhando-o sem conseguir defini-lo.

- Mais doloroso do que andar à esmo – respondeu sereno – muitos passam existências e existências, desapercebidos de si mesmos.

Após alguns minutos, a título de curiosidade, perguntei para ele se a poção tinha o mesmo efeito que uma frase de amor.

Ele deu mostras de não compreender.

- Frases de amor, declarações...- insisti – outro dia vi num filme antigo o personagem dizer para a companheira... hummm...deixe ver...Ah sim, ele estava com câncer e ofereceram-lhe a cura, mas esta só ocorreria num local muito distante, a mulher não poderia ir junto. Foi quando ele disse para ela: não tem problema, prefiro ter mais 6 meses de vida ao seu lado, do que passar a eternidade longe de você. Ou, posso te dar outro exemplo. Outro filme. Ele sofre uma grande perda e resolve deixar tudo para trás, inclusive ela, que ainda não era exatamente uma companheira, viria a ser. Enfim, ele parte, ela vai atrás dele e diz: por favor não vá, a vida perde o sentido sem você, meus defeitos desaparecem quando estou ao seu lado...

O homem de rosto indefinido me olhou por instantes, parecia não saber como agir ou o que falar. Em dois segundos ele deu meia volta e sumiu no meio dos outros pedestres. Ainda exclamei, mais de uma vez:

- Ei! E a poção?

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 23/09/2010
Reeditado em 21/09/2012
Código do texto: T2515947
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