O que era doce acabou?                      
 
Me recuso a aceitar que o que era doce acabou! 
Não consinto nem pensar nisso!
Não importa os comentários alheios, vou teimar até o último suspiro.
Vou explicar o que entendo por  “doce”.
Doce é o tempo inconseqüente e “doce” da infância, para quem teve uma infância feliz. Tempo das brincadeiras, da inocência e das pequenas ou grandes maldades, das fugas, das brigas, das mentiras bobas, onde a curiosidade e liberdade imperavam.
Enfim de aventuras.
Minha pobre mãe morreu fazendo tratamento psiquiátrico!
Também pudera, como uma filha assim...
Filha única, magricela, quatro fios de cabelos loiros quase brancos sempre desgrenhados, rosto sempre vermelho e suado, roupas rasgadas com algumas fitas penduradas, descalça, infernalmente agitada e fujona! Tenho certeza que fui a causa dela não querer mais filhos...
Comecei cedo a descobrir que existia a liberdade.
Aos três anos fugi de casa, era noite, atravessei um bosque muito grande com enormes árvores(calculo uma extensão de mais ou menos trezentos metros) andando apenas por um caminho estreito, sem iluminação alguma, a não ser a luz da lua.
Fui para igreja.
Perambulei entre os bancos conversando com as pessoas que assistiam a reza, passei a sacola vermelha para pegar dinheiro, depois me sentei ao pé de uma enorme cruz  colocada no centro da nave para  comemorar a semana santa.
Cansada adormeci.
Acordei com meus pais e muita gente me chamando, até os nossos vizinhos, todos com voz de poucos amigos e  nervosos, contrastando com minha calma!
O padre, um alemão meu amigo padre Germano, me abraçou e me entregou aos meus pais, recomendando a eles calma...
Minha mãe chorava e me abraçava nervosa só falava  muito alto, parecia uma louca!
Não entendi nada! Estava tão bom dormir sentada!
Praticamente me arrastaram para casa.
Quando chegamos  meu pai me levou para a cozinha, tirou o cinto e veio para me dar uma boa surra. Não tive duvida peguei um pano de prato que estava por perto e me enrolei nele. Não levei nem uma cintada!
Meu pai riu e me chamou de capeta, sei que ele não queria mesmo bater na “filhinha”dele! Colocou o cinto e me deu um copo de leite e me mandou ir dormir, eu fui!
Mas o susto valeu! Nunca mais fugi a noite, só durante o dia...
(Até hoje adoro “fugir”, sumir sem ninguém saber onde estou.)
Sou a neta mais velha de uma fileira interminável de primos, mais ou menos uns trinta. Nos reuníamos   durante as férias escolares na fazenda do meus avós.
Ele era metódico e bravo, mas minha avó era a calma e a meiguice  em pessoa, sempre muito bem arrumada e com sapatos de saltinho e meias de seda desde manhã.
(Acredito que a calma devia ser auto preservação!)
Adulada pelos avós, eu fazia terrorismo com os menores, eram obrigados a me obedecer ou entravam no tapa.
Só uma pessoa era a minha paixão, amiga e companheira para o que desse e viesse,  pouco mais nova que eu nos entendíamos pelo olhar, era a minha prima “ a sardenta”!
Certa vez  estávamos sozinhas em casa  e soubemos que haviam matado um gambá, e que o bicho estava no quintal.
Coitado  ficou jogado...
Nós estávamos sozinhas em casa...
A sardenta, eu e o gambá nos olhando no meio da poeira.
Nem dois minutos depois ele estava sobre a mesa da cozinha e nós duas abrindo a barriga dele com a gilete do aparelho de barbear do vovô!
Destripamos o bicho, vimos e retiramos todos seus órgãos internos e depois jogamos tudo bem longe da casa.
Voltamos à cozinha, o cheiro era horroroso, entramos em pânico! O vovô estava para chegar, ele ia sentir aquele cheiro!
Arrastamos a mesa para a varanda, jogamos água quente e todos os líquidos possíveis que estavam ao nosso alcance em cima dela, estávamos esfregando como doidas, com as mãos doendo, quando o avô chegou.
Surpreso ao ver duas  preguiçosas trabalhando, apenas sorriu e entrou em casa... Pela sala da frente felizmente!
Deixamos a mesa no sol e desaparecemos!
Sumimos por várias horas.
Logicamente não ficávamos sentadinhas calmamente...
Logo inventávamos outra coisa para brincar.
Fazíamos fogão de barro, rebocado com cinza, levávamos horas para fazer fogo, roubávamos panelas da cozinha, arroz e sal, para fazer comidinha. Depois de pronto, cheio de fumaça e fuligem, ficava “incomível”, horroroso! Íamos almoçar em casa! A Cozinheira se chamava Juliana, era uma mulher muito alta e magra, era boazinha nos dava enorme pedaços de bolo de fubá.
A única exigência que os avós faziam era obedecer aos horários das refeições, do banho e de dormir, ninguém ousava questionar, afinal tínhamos o dia todo de liberdade...
A mesa de refeição era enorme, a criançada toda em volta, mas não se ouvia um “pio”, também com o vovô sentado na cabeceira da mesa... Só deixávamos a mesa depois que ele se levantasse. Interessante tanta rigidez conjugada com tanta liberdade, e dava certo, ninguém desobedecia!
Saiamos correndo, não podíamos perder tempo.
As maldades faziam parte das brincadeiras como por prendedor de roupas no rabo dos gatos, amarrar e acender as “bombinhas” no rabo do cachorro para ver os bichos saírem desesperados.
Estilingue sempre armado com pedrinhas para acertar tudo que aparecesse, até as galinhas que pulavam de susto e saiam voando... Bom demais!
 Era uma festa tomar licor de leite e de ovos escondido.
Fumar era nosso sonho, tanto infernizamos a vida da Juliana que a coitada nos ensinou a fumar o que ela fumava e  chamava de “paieiro”, a “sardenta” tinha asma, foi um Deus nos acuda! Eu fazia fumaça sem parar enquanto Juliana abanava minha prima. De repente meu estomago deu alarme, fiquei enjoada, com a boca e a língua ardendo...A cozinheira me fez tomar uma caneca de leite...Daí sim que a coisa complicou, a “sardenta” estava bem, mas eu branca como papel,o estomago fazendo “motim”, passei mal o resto do dia...Nunca mais pude nem sentir o cheiro de fumo que a Juliana exalava quando chegava perto de mim!
Fico pensando na vida das crianças atualmente: as famílias são pequenas, poucos tios e por extensão poucos primos(quando tem...)  pouco espaço, pouca liberdade, pouca criatividade...
Parecem robozinhos!
É raro o que  têm oportunidade de viver no campo, conhecer animais, andar a cavalo, pisar em formigueiro, fugir de abelhas, procurar minhocas na terra e pegar para por nas latas para pescar em rio(não em pesque e pague), ver a galinha botar ovo no ninho e ensinar os pintinhos a procurarem bichinhos na terra.
Eles acham que as galinhas só existem no supermercado e nas granjas, todas iguais, branquinhas( de raiva) e os pintinhos são dados de presente em supermercados, como se não fossem seres vivos e que não cresceriam nunca.
Aprender a semear qualquer coisa e ter paciência para esperar e  acompanhar o crescimento da planta para depois colher. Essa espera que a natureza exige não faz parte do imediatismo da vida das crianças de hoje. Vivem fora da realidade sem entender absolutamente nada da natureza. Coitados e depois querem ensiná-los a preservá-la! Que contra senso!
Me considero privilegiada por ter tido tudo isso a meu dispor e ter aproveitado o máximo.
Acredito que devo a esse tipo de infância o bom humor que me acompanha sempre,mesmo ainda sendo  briguenta...
A grande maioria das pessoas corre tanto atrás realização profissional, de dinheiro, do sucesso e da  fama, que se esquece de ser feliz, de rir e de brincar como se fosse criança, fazendo “artes”, verdadeiro presente para a alma e felicidade para a estabilidade  emocional
Incrível, mas não resisto a uma “artezinha”, é a força do hábito!
Afrouxo a tampa do paliteiro no restaurante, escrevo mensagens engraçadas num papel e coloco no cardápio, aperto todos os botões do elevador, empurro e escondo o carrinho de compras de alguém em supermercado, toco campainha das casas e corro durante as caminhadas diárias,( a casa sempre perto da esquina para assegurar a “rota de fuga”, atendo o telefone e digo que é da funerária boa morte, no carro quando alguma moça vem entregar folhetos me finjo de surda  para  depois olhar para elas e dar um espantoso grito... Elas pulam longe e depois ficam rindo!
Existem  outras coisinhas mais, mas não entrego todo meu “arsenal”... Ainda amo fazer estas brincadeiras...
Sei que estou me arriscando, mas adoro aventura!
Para mim e para “sardenta” o que era doce jamais vai acabar,  não vamos  permitir!
 
 
M.H.P.M.
 
 
Helena Terrível