A Caixa do Mímico

Calçar o pé direito do sapato antes de calçar o esquerdo de forma rotineira, talvez muitas pessoas façam sem perceber. Agora, calçar o direito antes do esquerdo de forma rotineira por uma espécie de condicionamento mental em que acredita-se: “o bem-estar universal depende de cada movimento que eu faça”, é algo que parece até piada. Tomar banho demorado, não por achar gostoso, mas porque precisa passar o sabonete 10 vezes no corpo para sentir que está limpa, não pisar nos quadrados escuros do chão por achar que eles são mau agouro, mexer os lábios de uma forma para fazer com que as pessoas parem de te olhar _ porque todo o mundo neste exato momento está olhando_, tudo isso faz parte do meu dia-a-dia divertido que causa estranheza aos meus amigos e outras pessoas que convivem comigo.

Não lembro exatamente como e quando comecei a fazer esse tipo de coisa, só lembro que, quando criança já desviava dos quadrados escuros e dos rejuntes do chão, apenas de brincadeira, acredito eu, entretanto essa conduta foi se tornando corriqueira até evoluir para uma perturbação. A princípio, eu e as pessoas que me cercam achávamos que eram apenas superstições. Era até charmoso, bonitinho, engraçado quando eu pulava os quadradinhos do chão, mas depois que comecei a me irritar com as pessoas porque elas mexiam nas minhas coisas de forma errada ou me chamavam no momento em que eu estava concluindo uma das minhas “cerimônias” estranhas, passei a repelir as pessoas e, as que não queriam sair do meu convívio se irritavam comigo, inclusive quando marcavam encontros e eu chegava aos lugares combinados com atrasos de, pelo menos, 40 minutos. Já houve situações em que preferi ficar trancada em casa a sair para algum lugar por achar que era mais seguro assim fazê-lo, em virtude de algum presságio com a lua ou algum inseto que entrou no meu quarto.

Quando eu era criança, eu era muito solitária. Por vários motivos, eu não interagia tão bem com as crianças à minha volta. A princípio por ser muito tímida, nunca me sentia bem em iniciar uma conversa por achar que não causaria uma boa impressão, também por ser gordinha e não cuidar muito da minha aparência meramente por uma dificuldade de adaptação às transições da minha vida, entre outros motivos que se eu transpusesse aqui dariam uma outra crônica. Tudo isso me tornou alvo fácil para chacotas no convívio escolar e com outras crianças, de outros ambientes. Sendo assim, fui me tolhendo para passar despercebida nos lugares em que andava e me enquadrar em grupos, afinal todas as pessoas precisam se relacionar com outras para poder ter uma vida saudável. Consegui me tornar em tese “normal” para os padrões de grupos seletos._ não eram todos, geralmente convivia com os que chamavam de NERDS, ou, como mais cruelmente chamavam, C.D.F.s”_ Contudo, eu não queria apenas me encaixar em grupos ou ser como todo mundo e, ser assim passou a me irritar de tal forma que mudei radicalmente a minha conduta: comecei a me vestir diferente dos meus colegas e passei a procurar as pessoas que mais tinham haver comigo, _os metaleiros, os hippies sujos, os hippies limpos, os punks sujos, os de boutique, os grunges, os nerds ainda..._ mas ainda sim eu me sentia insegura. Procurei respostas as minhas questões internas em livros, em pessoas e em religiões, mas sempre ficavam lacunas a serem respondidas e por isso nunca aderi plenamente a nenhuma teoria. Muito embora eu não me impressionasse muito com tudo o que lia, via e ouvia, acabei trazendo para a minha vivência muitos dos ensinamentos que tive e, com eles, algumas crendices também. Fui batizada no catolicismo, conheci algumas coisas sobre religiões politeístas variadas, conheci um pouco do budismo (que achei de todas a mais sensata), passei por outras religiões cristãs, enfim, fiz uma miscelânea de pensamentos, muitos desses bons que levo para a vida toda. Mas além das mensagens positivas, levei comigo muitas bobagens que as pessoas falavam e me obrigavam a fazer, transformando esse conjunto de inutilidades em transtornos, como por exemplo, se benzer três vezes quando falar o nome do inimigo de Deus, ou ainda pedir licenças quando passar por alguma “obrigação”, ou pior, falar “está amarrado” quando alguém fala o nome do “coisa ruim”. Daí comecei a ler alguns livros duvidosos sobre física quântica e achei que qualquer movimento que eu fazia poderia desencadear uma hecatombe universal! Piração total!

É hilário ver uma maluca fugindo do chão, fazendo caretas seguidas vezes, porém para quem convive com pessoas que possuem esse tipo de comportamento é irritante. Imaginem, uma pessoa que demora quase uma hora para sair de casa porque todos os rituais de sua paranóia têm de ser concluídos! Então pensem na pessoa que sabe que todos esses rituais são irracionais, todavia não consegue se desvencilhar deles, sentindo-se até envergonhada na rua, diante de outras pessoas, por ter comportamentos tão estranhos mas que, por algum motivo obscuro, ela acredita que são fundamentais para sua sobrevivência. Isso é um inferno!

Já limitei muito das minhas possibilidades tanto de relacionamento quanto de trabalho por conta do meu transtorno: já deixei de encontrar amigos, já abdiquei de projetos maravilhosos, já abandonei trabalhos artísticos lindos (eu sou desenhista e pintora amadora), deixei de vendê-los, não quis expor nada do que eu fazia e muita coisa ficou pegando poeira em casa enquanto muitas pessoas pensavam que eu não tinha nada a oferecer. È como a caixa invisível que o mímico faz: não está ali, mas ele se move exatamente como se ela estivesse.

Só um psicólogo poderia explicar melhor quais motivos levam uma pessoa a agir e pensar dessa forma, no entanto, eu tenho uma teoria: Quando um indivíduo é muito reprimido na infância, ele adquire uma insegurança que limita todos os seus movimentos, acreditando que tudo o que faça é repreensível. Daí, com o avançar de suas idades, quando ele começa a questionar o sentido da vida e todas as coisas que o cercam, se depara com inúmeras teorias tomando para si algumas que farão parte de sua vida e moldaram seu modo de agir diante de inúmeras situações. Entretanto, esse sujeito não faz isso de forma saudável, por já ter tido traumas durante suas primeiras experiências de mundo, até se ver preso a uma armadilha que ele mesmo criou, a qual era para ser sua tábua de salvação, e fez com que sofresse muito mais.

Atualmente, consigo controlar o meu transtorno, pensando em todas as vezes que não segui minhas superstições e, mesmo assim, consegui viver os dias, penso também em tudo o que faço e deixo de fazer em prol de algo que não vale a pena e, antes de “pular um quadradinho” no chão reflito que a maioria das pessoas que conheço não faz nem a metade dos rituais que faço. As pessoas que me amam de verdade me ajudam, me pondo em confronto com a realidade e me dizendo coisas para me acalmar. Até escrevi sobre isso! Antes talvez achasse que não poderia escrever sobre o assunto, pois acabaria morrendo no dia seguinte. _Deus que me livre!_ Não preciso fazer nada para que o mundo tenha continuidade, ele vai sempre existir com sem mim. Hoje vivo relativamente tranqüila.

P.S: Até então não me aconteceu nada, mas se eu empacotar hoje, eu volto para contar como foi...