Orgulho de ser neta do Seu João.
 
Durante as férias eu ia o mais rápido possível para a fazenda de meus avós maternos, lá encontrava os outros primos, era uma festa! Muitas crianças correndo pela casa, quintal, riacho e comendo as delicia que a cozinheira Juliana fazia.
Muitas vezes meu avô me chamava para ir até a casa de algum empregado para dar recados ou acertar algum trabalho extra.
Eu ia toda feliz, ele montado em um cavalo chamado Bonito, alto e muito bonito mesmo, fazia jus ao nome, tinha um galope espetacular parecia voar.
Eu sempre montava uma égua branca chamada Serena, era mansinha, calma, obediente, tinha boa marcha e trote macio, não oferecia perigo.
Todos os netos e outras crianças que queriam montar a cavalo só montavam a Serena. Ela era linda, todos nós a amávamos abraçávamos muito e fazíamos carinho, ela não se mexia, sabia que era amada. Até os que choravam como loucos para não montá-la gostavam de chegar perto para   passar a mão receosa em seu pelo branquinho
Geralmente a casa dos colonos não era perto, pelo menos meia hora a cavalo. Cavalgávamos pelo pasto conversando sobre várias coisas, meu avô sempre me contando “causos” me ensinando várias coisas. Certa vez estávamos indo tranquilamente quando de repente ele saiu a galope na direção de uma vaca que parada nos olhava muito atenta, aos gritos e girando o chicote no ar,fez com que ela saísse correndo para outro lado e se escondesse atrás de algumas árvores. Eu fiquei surpresa com aquela atitude.
Quando ele voltou me disse que tomasse cuidado com aquela vaca, era um “demônio”(segundo ele), chamava-se Vermelha, atacava qualquer coisa inclusive quem estivesse a cavalo, ferindo o animal.
Fiquei gelada só  de pensar na Serena ferida!
Estávamos chegando à casa do Seu Zeca um colono que eu conhecia desde pequena, ele sempre acompanhou meu avô, era uma pessoa tranqüila, casado com uma mulher chamada Maria Gorda pessoa de “maus bofes”, “cara azeda”, tinham muitos filhos para sustentar a todos aos domingos Seu Zeca ia ao povoado para vender pipoca com um carrinho de pipoca caindo aos pedaços. Mas sempre vendia alguma coisa e passeava um pouco na “cidade”...
Ao chegarmos perto da casa escutamos um barulho de panelas, coisas sendo atiradas e gritaria. Uma briga prá valer.
Olhei para o vô João buscando resposta, não sabia o que era aquilo, aquela confusão. Ele fez um sinal me mandando ficar quieta, sem fazer barulho, ele sorria muito.
Eu obedeci. Depois de alguns minutos quando houve uma pausa no barulho, vovô bateu palmas e gritou o nome do Zeca, como se estivesse acabando de chegar.
O homem demorou alguns minutos para sair, apareceu muito vermelho, de chapéu, arrumando a camisa dentro das calças. Meio sem jeito nos cumprimentou.
-Discurpe seu Jão, demorei pruque tava ocupado educano a famia, discurpa a demora.
-Num tem nada dimais, vim ti avisá pra prendê a Vermeia que tá sorta no pasto, é perigoso ela ficá puraí. Si pricisá di ajuda avisa o Manél, diz pra ele consertá o mourão que caiu pros lado da mina dágua.
-Podi dechá, vô prende ela.O Sinhô num qué entrá pra tomá um café o bebe uma água?
-Não brigado, mai tenho qui passá notro lugá. Té logo, té mais vê.
-Inté.
Quando estávamos a boa distância da casa do Zeca o avô caiu na gargalhada,  ria tanto que quase não conseguia falar.Quando pode falar me disse:
 –Sabi o que tava aconteceno com o Zeca?Ele disse qui tava educano a famía né?
Ele tava é apanhano da Maria Gorda, ela desce u cacete nele sem dó, ela é qui tava educano ele no porrete! Tudu mundo sabi qui ele apanha dela, mas ele memo nem disconfia qui o povo sabi qui ele leva coro dela!
Achei muita graça na história e fiquei surpresa de acontecer essas coisas no interior, menos ainda numa fazenda onde os homens domam cavalo bravo!O Zeca era excelente domador, tinha uma força de leão!
Apanhar da mulher?...Não fazia sentido um machão apanhar assim.
- Vô, se ele quiser quebra ela no meio! Porque ele não reage?
-Homi num bate im muié nunca! Tá loca? Matá eli podi, si ela enganá eli, mai batê não!
Caramba! Que solução prática!
-Ele não tem medo de ir preso se matar?
-Magina! Si eli batê  i vai preso, daí sim qui a muié podi aprontá prá valê eli na cadeia num podi fazê nada.Si eli matá vai preso pur que matô, mas ela num apronta nunca mais. Eli fica sussegado na cadeia, ou intão eli si alonga nessi mundão de Deus, ninguém acha, fica mocado na casa di arguém di cunfiança longi daqui.
Tem a maior lógica do mundo!Uma lógica “atravessada”, mas tem!
Soluciona a infidelidade com separação definitiva de verdade, sem advogado, juiz, papelada etc.etc.
-Vô  João nunca pensei que essas pessoas do “mato” fossem como eles são, pensei que eram inocentes, sem maldade.
-Minina, achu qui ocê é meiu passa nágua, elis são genti comu tudu mundo.Vê o Sinvar,qui joga dominó cum oceis dipois da janta.
Quê que ocê  acha dele?
-Eu gosto dele, é muito bonzinho, brinca bastante com a gente, é um amor de pessoa.
-Concordu, eli é muito bão, homi sério, honestu e muitu fier pra mim.
Vo te contá um acontecido, mai ocê fecha essa boca, num fala pra seu ninguém, ocê jura fia?
-Claro que juro, pode contar.
-Confiu no cê. O nomi deli num é Sinvar, é Sebastião. Eli tava jogano baraio lá pras banda du Mato Grosso, um besta qui jogava cum eli disabusou eli dizeno qui eli tinha robado nu jogo.
Eli é homi honestu i sê chamadu di ladrão era um disaforo sem tamanhu intão chamô o disabusado pra briga, elis saíro du bar pra brigá. Deu nu outro até cansa e dispois meteu a faca no bucho du homi, qui morreu quenem um porcu.
Eli já me conhecia di muito tempo i sabi qui sô homi di cunfiança, intão eli si acoitô aqui.
A policia nunca qui vai achâ eli aqui, mai ti garantu homi  bão, di cunfiança i trabaiadô feito eli num tem.
Meu Deus! Sempre pensei que o Sinval não seria capaz de matar nem uma mosca! Era a delicadeza e bondade em pessoa, calmo demais até para falar.
Continuamos cavalgando em silêncio, cada um com seus pensamentos, eu remoendo o que tinha acabado de saber.
Nos dirigimos para a casa de farinha, a “farinheira”, um lugar amplo, onde várias crianças descascavam mandioca para as mães ralarem num ralo de metal, e depois colocarem num tipiti(um espécie de canudo de palha trançada com um peso na ponta)para escorrer todo liquido.Os homens colocavam a massa seca num tacho enorme sobre vários  fogões a lenha e com uma espécie de rodo, iam mexendo sem parar para secar e torrar a farinha.Parece fácil, mas é um trabalho que requer muita prática, é necessário saber o ponto certo do calor do fogo e a rapidez com que se revolve a massa.
Enquanto eu ficava observando o trabalho, meu avô chamou um rapaz de lado para conversarem, não ouvi o que eles falavam, mas notei que o rapaz estava contente, sorria bastante.
Depois de algum tempo vovô pegou um saco quase cheio de farinha e jogou sobre a garupa do cavalo.
 Me chamou e fomos embora, fiquei feliz, porque dentro da farinheira mesmo ventilada era um calor de matar, o ar fresco da tarde era uma benção!
Curiosa como sempre perguntei meio desconfiada:
-Vô quem era aquele rapaz que estava conversando com o senhor, ele estava tão contente!
-Aqueli é o fio da Sá Rusária, vai casá manhã, a mãe deli trabaia na farinhera dêsdi mocinha, muié boa tá li.Dei di presenti pra eli fazê a festa uma leitoa, i uma das vaca di leiti pra ele criá, i vendê u leiti pra fica com poco mais di dinhero.
Si ocê quisê manhã nóis vamo no casamentu, mai só na igreja, na festa num vô, elis fica sem jeito quano eu vô. Dexa elis se divertí sussegado du jeito deis.
A psicologia natural e o bom senso funcionaram, por mais amigo que fosse ele era o patrão, portanto era “gente diferente”.
Já estava quase escurecendo quando chegamos em casa.
O sol estava se pondo, deixando o céu de varias cores, desde o vermelho intenso, o amarelo e sobre nossas cabeças um azul muito bonito.
Jamais esquecerei a felicidade que tive ao presenciar aquela cena, foi o quadro mais belo que já vi, uma graça divina.
Até hoje me emociono ao lembrar.
 De longe brilhava a luz do lampião iluminando a cozinha, a fumaça saindo da chaminé, a escadaria para chegar até a casa.
Mal se divisava os pilares muito altos que sustentavam a casa, entre eles um grande espaço vazio de chão batido chamado de porão.
Fomos nos aproximando a passo...
Chegamos ao porão onde deixamos os animais para que um rapaz chamado Quim tirasse os arreios, desse água e comida para eles para depois solta-los no pasto.
Antes de subir a escada para casa abracei a Serena e agradeci o dia que ela me proporcionou, dei-lhe água e comida. Até para comer ela parecia uma dama!Quando a soltei para o pasto foi galopando e balançando a enorme crina branca. Estava linda!
Subi a escada mais morta que viva, com “tudo” doendo!
Meu avô veio ao meu encontro e perguntou se eu gostei do passeio, respondi que sim e agradeci, ele com um olhar malandro me disse:
-Intão vá durmí logo purque manhã teremo um “estirão”, manhã tenhu qui i numa otra casa bem mai longi du qui a qui fomo hoji, dipois mi avisa si qué i .
Pensei bastante e antes que respondesse, ele mesmo resolveu a situação dizendo:
-Si ocê quisé i levanta cedu, si num quisé fica na cama qui eu vô sozinho. Dei Graças a Deus por ter escolha.
Depois do jantar chegou o Sinval, aquele “santo” amigo para jogar dominó, perdi todas as partidas, só podia, meu pensamento estava no dilema de levantar cedo ou não no dia seguinte...
Deitei com a decisão tomada...
Eu vou!
Tenho que acordar cedo!
Na manhã seguinte ao acordar me levantei com um pulo, vesti minha roupa depressa e corri para a cozinha.
Minha avó como sempre bem humorada, sorrindo me disse:
-Bom dia filha, vá lavar o rosto que o almoço tá pronto e teu avô chega daqui a pouco!
Entrei em pânico, não era possível eu ter dormido tanto, e perdido passeio!
Sinval encostado na porta com uma caneca de café na mão, só me olhou , sorriu, mas não disse nada... Nem precisava!
Fiquei sem saber se ria ou se chorava...
Ainda estava cansada, querendo voltar para minha caminha macia.
Ai meu Deus o vovô vem vindo, o que vou dizer a ele?
Desapareci dentro do meu quarto!
Escutei o barulho dos passos dele com aquelas botas que faziam a gente saber que ele estava por perto.
Escutei baterem de leve na porta.
Eu sabia que era o avô, abri a porta e ele estava segurando  um prato com duas enormes e lindas mangas, minha fruta favorita.
-Fia, eu pudia tê ti acordadu, mai vi qui ocê tava durmindo tão bem qui nem ti chamei. Passei no pomar i truxe essas manga, ta madurinha, vem armoçá qui dipois nois vamô comê elas di sobremesa.Truxe pra tua vó tamém, ela gosta dimais da conta di manga, parece ocê!
Queria dar um beijo enorme naquele “polaco” que estava na minha frente, mas o respeito que ele inspirava não permitia esses arroubos.
-Obrigada vô de ter lembrado de mim. Já estou indo almoça.
-Tá bão mai num demora, tô com fomi.
Fiquei olhando ele se afastar, reparei naquelas costas fortes e os passos firmes, decidido. Vou me lembrar para sempre de seus gestos delicados, apesar de seu caráter rude de homem criado no campo, respeitador da natureza como ninguém.
Homem de visão e de coragem como poucos, enfrentou e venceu todas as dificuldades encontradas por um pioneiro, fundador de cidade onde antes havia apenas mata intocada.
Outro dia ouví um de seus descendentes e outros agregados a familia fazerem pouco de seu sobrenome, fazendo ironia e até menosprezando.Não passam de uns borra botas inconsequentes que não sabem o que dizem!
São resultado de "cruzas" como você diria, mal feitas ou de inveja, não sei bem.
Mas não se preocupe vô , onde você estiver sabe muito bem que eles não são nem a metade do homem que você foi, alguns se desviaram, outros são trabalhadores mas contaram com um "empurrãozinho", nenhum deles criou uma família com mais de dez filhos contando apenas com os próprios braços e a coragem de levar e se responsabilizar por todos, inclusive filhos casados e netos para um destino desconhecido.
Como se diz hoje, tem que ser muito macho!Você foi!Dizem que você era ruim,não acredito,eles confundem ruindade com caráter,quem exige respeito e respeita até os animais não pode ser ruim.Nenhum deles deixará um nome que era tão respeitado como o que você deixou.
Vamos esperar que o futuro os ensine... 
Sempre amarei aquele “polaco”, tenho muito orgulho de ser neta do Sr. João e principalmente levar seu sobrenome.

Saudades sem fim ...
 
M.H.P.M.
 
Helena Terrível.