BADERNA NO SATÍRIO

Uma moça escandalosa da qual eu não conheço a fisionomia, nem a personalidade, se bem que deve ser daquelas que adoram uma bagunça quase todos os dias, iniciou sua profunda falácia aos berros na rua lá embaixo na maré-mansa, no centro do Satírio.

Eu estava acomodado numa cadeira de madeira leve e barata, apoiado sobre a mesa de mesmo material e preço. Por cima dela, encontravam-se (ainda hoje se encontram, tudo no mesmo lugar) um liquidificador dentro da caixa, mas não novo, já usado diversas vezes. Ainda à mesa descansavam a garrafa de café, copos de vidro de tamanhos e formas variados e ingredientes usados durante o cozimento de alimentos como manda a culinária tradicional. O óleo, o alho, o sal, todos já em seu fim clamando potes cheios, apenas a pimenta ainda é farta, também é daquela que arde até a alma do sujeito, poucos ousam experimentá-la. Parecia a mulher daquela noite.

A algazarra da pobre moça continuava, prosseguia e seus gritos podiam ser ouvidos por toda cidade. Lá no Pito, no Quilombo (embora aqui seja parte integrante do bairro), no Centro, na Guanabara, em Niterói e até mesmo na distante Vila Nova. O eco perfazia ao encontro com os morros que circundam Iúna. Talvez, até o Colossus tenha sido vítima do barulho insuportável daquela mulher protestando alguma coisa ou querendo se aparecer, apenas.

De repente, um homem surgiu e estrondosamente gritou com absoluta razão “Cala a boca mulher, quero dormir”. A moça ignorou o pedido do rapaz e ainda mais alto ordenou que ele voltasse à sua casa e deitasse. Fiquei com pena daquele corajoso homem. Será que ninguém pode com aquela mulher?

A baderna teve continuidade. Já haviam se passado umas duas horas e nada da mulher parar. Não tinha feito nenhuma pausa sequer, pelo menos para recuperar o fôlego que aparentava estar esgotando, mas com o tempo percebi que era engano meu e recomecei minha atividade de escrever bobeiras, para depois redigir um texto sério falando do amor. Não consegui.

Enquanto eu rabiscava sem sentido algum um pedaço de papel já meio amarelado, dei uma olhada pela pequena báscula construída ao lado da mesa e próxima ao fogão. Para além de seus vidros e metais é possível uma visão miserável de um prédio verde, de uma parede próxima em alvenaria e dos fios de alta e baixa tensão que cruzam horizontalmente meu espaço de visada.

Lá no pequeno edifício verde notei alguém observando a “falazada” barulhenta da mulher. A pessoa ficou lá na sacada da varanda por poucos minutos e logo saiu. Talvez, tenha voltado depois para conferir o desfecho da história embaraçosa e delirante da mulher. Analisou, porventura, todo drama e uma certa boca suja, um vocabulário chulo que expressava aquela moça de vez em quando.

Quer saber! Vou deitar também e apenas ouvir a bagunça noturna que se move pelo Satírio, quem sabe isso me proporcione um bom sono. Uma hora aquela mulher descarrega sua bateria e vai também dormir e, pelo menos nesse tempo, a cidade de Iúna poderá viver um profundo silêncio humano, pois a cachorrada ainda late com persistência.

Zorzan
Enviado por Zorzan em 15/10/2010
Reeditado em 31/01/2011
Código do texto: T2557561
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