O HOMEM INVIÁVEL

Abandonou seu nome de batismo. Não o trocou por outro seguindo padrões de estética, superstição da numerologia ou qualquer outro arranjo moderno. Na verdade, o nome se desgrudou dele, assim como o fizeram parentes, amigos, conhecidos, todo o seu círculo social, como numa procissão de marcha a ré. Não precisa mais existir juridicamente. A foto da sua carteira de identidade não mais o representa: é outro agora, um ser localizado em algum lugar entre um animal e um homem. Encarna, em todas as suas misérias, o sub-homem, sem qualquer encanto ou química humana.

Não tem mais um endereço fixo, não há em seu nome mais nenhuma caixa postal. Não mais lhe remetem cartas de amor, cartões de natal ou felicitações. Não é mais alvo da propaganda política, não é alguém a ser convencido sobre o melhor candidato e suas propostas de cunho social. Nunca mais foi abordado por moças bonitas fazendo pesquisas de consumo ou querendo saber em quem votava. Sua opinião não tem mais o peso de se contrapor nem ao mais insignificante dos mosquitos.

Sua presença não é mais desejada. Desnecessário em reuniões, jantares de gala e festas de formatura. Não faz mais parte de nenhuma turma. Não há nem a grande massa nem o gueto. Sua casa é toda a cidade. Dorme nos bancos das praças quando sol ajuda. Dorme na entrada da igreja, quando Deus, generoso, manda chuva. Para ele não há tempo ruim.

Os sonhos de felicidade, de chegar lá ou de dominar o mundo foram simplificados em um meio de arrebatar a próxima refeição e sobreviver, sabe-se lá em nome de quais instintos. A libido não mais cumpriu em seu corpo qualquer função. Nada em si mais desperta impulso de sedução. Não há nenhuma loucura de amor a ser vivida ou uma secreta paixão a arrebentar em seu peito. Seu coração só se consome pela necessidade de cumprir sua jornada biológica.

Entre o chão que pisa e o céu que o esmaga não há nem a mais vã das filosofias. Entre um papel contendo Drummond e um papel contendo bula de aspirina ele não tem qualquer preferência. Nada espera da ciência a não ser que o deixe dormir em paz, longe da possibilidade de análise. Do pão da vida oferecido no sermão pelo padre só é devoto das migalhas que podem eventualmente cair. Entre o pão da vida e o pão da panificadora da esquina não tem dúvida sobre qual se lançar urgente para devorar. Nenhum artista exerce sobre ele algum tipo de alquimia. Transformou-se na terra seca, sobre a qual não germina nenhuma semente.

Rival da paisagem, perturba a ordem local e distrai perigosamente os olhos das famílias de bem. É o estorvo, o efeito colateral do programa econômico do governo. É o estrume infértil, a heresia do sacrifício de Cristo que contradiz o pastor. É o indesejado corvo, a pedra no meio do caminho que desmantela a arquitetura da cidade, para pânico do prefeito. O homem inviável, criatura concebida à margem dos mandamentos, tolerado apenas como parte de uma paisagem a ser evitada, uma paisagem a ser queimada até da lembrança.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 15/10/2010
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T2559135