CORRIDA DE TAMPINHAS

Eram uns três moleques postos na periferia duma rua ainda não pavimentada naquela manhã alegre de sábado ou domingo. Onde eles estavam, uma fina camada de areia de construção servia-lhes de divertimento, aparentemente. Foi quando dei uma breve parada e observei melhor o que se passava por ali. Notei um dos moleques utilizando o comprimento de um dos pés, arrastando-o sobre o chão descompacto, para delinear uma certa estrada, às vezes sinuosa, e dotada de pequenos morros e obstáculos. Comecei a cogitar o que seria. Os meninos tiraram “adedonha” e tomaram tampinhas de garrafas de refrigerante ou cerveja em suas mãos. Confirmei então minha hipótese que era a da saudosa corrida de tampinhas.

Com um sorriso meio escondido no rosto, segui meu caminho, relembrando o Nagem Abikahir em meu tempo de pirralho meio crianção e abobado. Em horários de Educação Física ou no recreio, nossa diversão era a corrida de tampinhas e ninguém podia nos interromper. Aqueles eram momentos únicos em nossas vidas de pilotos aficcionados controlando, com certa maestria, uma tampa de plástico ou de alumínio. Em particular, eu preferia tampas metálicas. Apesar de um pouco mais pesadas, sua aerodinâmica facilitava o deslocamento nas curvas mais fechadas. As de plástico se davam melhor nos morrinhos e em pistas mais arenosas.

O circuito é feito, como já foi dito, pelo arraste de um dos pés sobre um plano qualquer formado por uma fina camada de areia, saibro ou outro material semelhante em textura e estrutura. Em seu desenho são colocadas curvas mais abertas e também fechadas (essas eu adorava), constroem-se pequenas elevações que quase sempre encerram, em suas baixadas posteriores, um espaço retangular com um “x” inscrito, denominado de “jacaré”. Podem ser colocadas em seu território pequenas valas antecedendo os morros ou mesmo numa reta deixando livre meia pista.

O jogo possui certas regras. Os jogadores têm direito a três “petelecos” na tampinha e a jogada é reiniciada quando o último jogador der sua última ação. Quando a tampinha cai fora do limite da pista, o jogador perde a jogada. Aquele que entra no “jacaré” retorna ao “jacaré” anterior se este existir, do contrário, volta ao grid de largada. De acordo com o nível de dificuldade, aquele que cair no “jacaré”, em qualquer ponto da pista, deve voltar ao início da corrida. É um tremendo desafio para os iniciantes. Cair na pequena vala é a tristeza para todos. Retorna-se à largada. Independia dos níveis de dificuldade esta pena.

Umas vezes fazíamos trajetos tão grandes e difíceis que nem o tempo do recreio era suficiente para completar o circuito. Poderíamos ter iniciado um campeonato aqui na escola ou quem sabe, em proporções maiores, um interescolar. Nossa equipe já estava bem entrosada, bem treinada. Também pudera, todos os dias dávamos partida às tampinhas. Não seria fácil nos derrotar se um campeonato acontecesse. O Henrique Coutinho não tinha condições de oferecer uma pista de qualidade, o terreno era mais argiloso, mais socado. A Deolinda nem se fala, possuía um espaço minúsculo e na hora do recreio aquilo lotava que nem terreno tinha para tracejar um circuito. O Porto Seguro era todo concreto. Do Renascer eu não podia concluir nada. O seu muro não permitia uma espionagem do espaço do pátio, dos seus componentes e principalmente do terreno destinado a uma possível pista. Enfim, éramos praticamente a elite da corrida de tampinhas.

Voltando à realidade, regressei àquele mesmo local onde os moleques brincavam. Parei novamente e me deu uma vontade súbita de pedir para entrar na brincadeira, mas consegui me conter, era apenas uma de nossas gerações carregando o que há de mais simples nessa sofisticada brincadeira.

Zorzan
Enviado por Zorzan em 16/10/2010
Código do texto: T2560210
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