CEMITÉRIOS

CEMITÉRIO

Os cemitérios sempre me chamaram a atenção.

Quando criança adorava ver as lápides, pulava de túmulo em túmulo a observar as palavras devotadas aos que neles jaziam. Das mais simples, onde constavam apenas nascimento e morte mais a costumeira frase da saudades dos "de casa" a estender aos parentes e amigos, até as mais elaboradas a homenagear o finado. Citando na maioria das vezes feitos de sua vida. Ficava a imaginar como fora a vida daqueles que não as tinham mais. Fascinava-me ver que em alguns o nascimento datava do século XIX (meu avô Zeca foi um). Fazia as contas da data de nascimento e morte para ver o tempo de vida. Deixavam-me pensativo as mortes dos jovens. Apreciava as esculturas, anjinhos de mármore, Jesus batendo a porta, crucifixos, retratos com sorrisos eternizados no papel mofado por trás do vidro velho, colunas gregas cortadas ao meio. Os pórticos e portões me fascinam até hoje. Varias simbologias que na minha mente infanta serviam apenas para tirar o sono e buscar abrigo na cama de meus pais. E quando conseguia dormir! Passeava em meus pesadelos por mausoléus, sepulturas e covas abertas onde os defuntos, fora delas, tomavam sol e me cumprimentavam . Mais tarde fui tendo conhecimento do significado de cada símbolo, como as colunas cortadas ao meio. Representavam os jovens que tiveram sua vida ceifada precocemente.

Dos 5 aos 9 anos morei próximo ao único cemitério da cidadezinha. Douglas, amigo de travessuras nesta fase da vida, e eu não perdíamos a oportunidade de ver um sepultamento. E um não saiu de minha memória: Dona Nega. Nunca soube quem era. Apenas vi seu caixão penetrar o pequeno espaço escuro forrado de cal. Por que não esqueço? Não sei! Talvez pelas intermináveis perguntas de Douglas (mais novo que eu) naquele fim de tarde sobre o que aconteceria com a Dona Nega depois de fechado o túmulo. Não me recordo de minha reposta, mas me lembro bem que meu amigo e eu, por várias vezes enterramos alguns objetos para ver o que aconteceria.

Nesta fase da infância brincávamos, eu mais outros colegas, de fazer cemitérios. Cômico isto? Sim! Mas brincamos disso. Com túmulos em miniaturas. Alguns mais bonitos que outros na insana ideia adulta, de mostrar que somos diferentes até pela ultima morada terrena. Tínhamos inclusive um “carro fúnebre” para transportar os chuchus, batatas, laranjas e outros vegetais que eram os finados de nossa infanta imaginação. Nosso transporte fúnebre era uma lata de cera em pasta da marca “Colmeia” com rodinhas e um pedaço de pano de cetim vermelho que tampava nossos “finados” legumes ou frutas. Dentre os legumes que sepultávamos sempre tinha um a representar o presidente eleito da época que nunca tomara posse. Seus funerais ficaram muito marcados em nossa memória infantil e quando brincávamos com o nosso mini cemitério, a ele dedicávamos as cerimônias e o mini túmulo mais bonito e pomposo.

Ainda na infância me marcaram muito os dias de finados.

Minha casa sempre tivera jardins. Não aqueles idealizados e projetados por decoradores como Burle Marx, mas aqueles que eram cultivados por mudas conseguidas aqui e acolá, em parentes, comadres e amigos. Até mudas furtadas às vezes. Afinal, corria-se um mito que "muda roubada" pega com maior facilidade e cresce mais bela e vistosa.

Minha mãe e minhas tias paternas cultivavam com amor e carinho flores de diversas qualidades em potes, vasos, latas de "tinta a óleo" e onde mais podiam plantar. Samambaias e margaridas eram as mais concorridas para o dia de finados. Depenando nossos jardins, fazíamos arranjos com latas de óleo cheias de areia e água (A dengue não assustava na época.) e sob o sol de novembro subíamos o morro até a cidade dos pés juntos. Lá, era certo encontrarmos parentes e amigos com quem conversávamos prolongadamente, sempre tendo o tempo por assunto principal.

Quando não era o sol escaldante era a chuva e o vento. Ventinho custoso que não me deixava ascender as velas. Era riscar o fósforo e o vento a apagá-lo antes de dar a chama ao pavio envolto em parafina. Tampava o vento com o corpo, juntava cacos de tijolos para montar uma casinha onde escondia a vela na crença de se manteria acesa até sua consumação final.

Todo ano tinha meu ritual. Velas e flores para o Vô Geraldo e Vó Joana, Mano Geovane, Vô Zeca, Tio Sebastião e Dona Antônia que não era parenta, mas foi vizinha em minha tenra infância e me enchia de mimos e doces. Eram quatro túmulos que eu tinha a obrigação moral de visitar. Mas dois que eu nem sabia de quem eram mas me chamavam a atenção. Uma pedra em forma de caixão que ficava perto do Vô Geraldo e um túmulo aos pedaços que ficava ao lado. Sempre roubava uma florzinha "dos de casa" para depositar disfarçadamente neles. Afinal tinham que ser lembrados e minha fértil imaginação infantil via seus usuários sorrindo pra mim ante minha atitude.

Cumprida as obrigações da tradição cristã voltávamos pra casa onde a primeira tarefa era lavar as mãos. "Cemitério tem muita doença!", sentenciavam minhas tias. Com a consciência do dever cumprido tomávamos café ao som da chuva que descia aos cântaros a estragar todas as decorações do cemitério, e a apagar velas né?!.

Em todo enterro que eu ia, fazia questão de aguardar o fechamento do túmulo e um ritual sempre me chamou a atenção. Um parente próximo (filho, cônjuge, sobrinho, etc.) do finado sempre cumprimentava o pedreiro que lacrava a sepultura. E eu a observar me perguntava: fará parte do cerimonial?

Certo finados, eu e meu amigo Douglas, o mesmo citado acima, pulávamos de túmulo em túmulo. Na ocasião entre os mais altos do cemitério, pois afinal também buscávamos adrenalina. Sobre eles observávamos as lapides e suas escritas quando fomos surpreendidos pelo coveiro que “raiando” conosco deu-nos um susto que do tumulo mesmo pulamos no muro e daí caímos na rua onde escafedemos numa carreira só, feito dois animais assustados.

E por falar em coveiros, que profissão mais sinistra. Na minha cidadezinha tinha um meio careca. Ele recebeu, do meu amigo Pezão, o apelido de "testa brilhante". Na ocasião, Pezão me ajudava a calhar um dos túmulos da minha família. O coveiro nunca soube desse apelido, mas eu e Pezão rimos varias vezes a lembrar de sua fronte lisa e brilhante sob o sol daquela tarde escaldante dias antes do dia de finados. Em Oliveira quando conheci Sô Onofre, vi que ele nascera para a profissão. Tinha cara, corpo e jeito de coveiro. Com sua pele morena, roupas largas, chapéu e óculos escuros podia assustar qualquer desavisado que perambulasse pelo cemitério sem saber de sua existência e ofício por ali. Digo isso porque fui um desavisado.

Certa vez num lugarejo as margens do Rio Pará, onde por uma semana convive alegre e satisfeito com seu povo, descobri que o cemitério era em torno da igreja. Raridade nos dias de hoje. A igrejinha é bela e de valor histórico. O cemitério nostálgico, triste, meio que abandonado com túmulos toscos e covas aos montes. Ali não havia coveiro, mas voluntários, que na sua grande maioria eram ébrios que a troco de uma boa galinha gorda e um litro de pinga realizam o ato de misericórdia de sepultar os mortos. Me mudei para Passos e o cemitério faz parte de meu caminho da roça, vou pro trabalho sob frescor da manhã e o contemplo em sua grande extensão, voltava da faculdade lá pelas 23 horas e achava-o bonito e instigante com seu pórtico e marquise de entrada. Hoje com sua entrada remodelada e resgate e restauro do pórtico original é digno de cartão postal. Não o conheço ainda em seu interior, mas hoje recordando destas passagens me propôs a ir lá amanhã.

Já fui a algumas cidades históricas mineiras e como não pude deixar de visitar as igrejas com elas também visitei os cemitérios que cada uma tem anexado ao seu território. Cada igreja fora erguida por uma confraria que mantém os cemitério para uso de seus confrades. Alguns pomposos, outros mais simples, alguns em volta da igreja e outros anexos a elas. Mas em todos um ar de paz e nostalgia, um convite a contemplação de vidas que já se foram a nos mostrar que a nossa também um dia se vai e que portanto deve ser bem cuidada para merecer uma lápide que resuma a história de uma vida que valeu a pena, que cumpriu seu papel, seu belo papel de filho de Deus, amante da terra e grande irmão no teatro da vida.

Gleisson Melo
Enviado por Gleisson Melo em 23/10/2010
Reeditado em 03/11/2021
Código do texto: T2574451
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.