TRANSPLANTE DE FÍGADO: A REJEIÇÃO

A vida é surpreendente: algumas pessoas são sedentárias, bebem muito, fumam demais, dormem e acordam tarde, mas vivem longa e saudavelmente; outras praticam esportes, dormem e acordam cedo, não bebem, não fumam, não furunfam e, precocemente, são promovidas a defunto.

Carlos Bocaiúva pertencia à segunda hipótese. Menino, teve infância normal e sem graça. Até ensaiou umas farrinhas na adolescência, mas não deu certo. Casou-se muito jovem e passou a levar “vida família”: acordava com os passarinhos, caminhava oito quilômetros todos os dias, fazia lauto e saudável desjejum, ia pro trabalho, voltava pro almoço balanceado, enfrentava a segunda jornada no escritório, voltava pro lar, tomava uma sopinha leve com a família, lia um pouco, exercitava-se e, cedo, estava pilotando o seu Pelmex.

Transar? Só nas noites de sábado – depois da novela das oito. E, mesmo assim, aquela transa burocrática: papai-mamãe, quatro minutos, virada de bunda e roncos até de manhã. Carlos era um verdadeiro ferrolho. Pedia perdão a Deus, sempre que pensava em outras mulheres. Coisa raríssima.

Um dia, Carlos amanheceu cansado, com dores no estômago, respiração ofegante, arritmia e ânsia de vômito. O homem tava mais amarelo do que pilha Ray-O-Vac. Tomou quarenta gotas de Elixir Paregórico, sem nenhum efeito. À tarde, com muita dificuldade, foi ao médico que lhe pediu uma bateria de exames e requisitou sua internação.

Dois dias depois, com os resultados na mão, o médico falou:

- Carlos, o assunto é sério: hepatite C. A doença está adiantada e só tem uma saída: transplante de fígado. Não é fácil. Você tem que sair da cidade para um centro mais avançado, batalhar e torcer para conseguir um órgão compatível.

Os planos de saúde, todos nós sabemos, só cobrem despesas de quem não está doente. Carlos vendeu tudo o que era vendável, se mandou para o Rio de Janeiro e internou-se no Hospital O Bom Samaritano. Cumpridas todas as formalidades, ficou à espera de alguém que morresse para lhe dar a vida.

No Jornal Nacional, William Bonner noticiou:

- O cantor e compositor Zeca Pagodinho, depois de mal súbito, deu entrada, hoje, no Hospital O Bom Samaritano. Os médicos evitam se pronunciar sobre o assunto; prometem um boletim detalhado para as próximas horas.

Carlos entrou em pânico, ligou para o seu médico e, quando atendido, implorou:

- Doutor, eu quero que o senhor me prometa que não vão me dar o fígado do Zeca Pagodinho... – E concluiu – Eu gosto muito dos sambas que ele faz. Mas é só isso!

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Aroldo Pinheiro
Enviado por Aroldo Pinheiro em 06/10/2006
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