Causas Apaixonantes.

Não existe nada mais satisfatório para um advogado do que uma boa causa apaixonante! Algo que arrebate o coração; que impulsione, comova, indigne, mesmo que não haja remuneração! Quem advogou uma vez sabe do que estou dizendo.

Peguei algumas no decorrer de meus quinze anos no mundo jurídico, dez como advogado.

Talvez não deva dizer qual a maior, a mais apaixonante, pelo fato de que tudo na vida é circunstancial. Talvez diga a de agora só porque a de outrora ficou distante na memória. Traumas e emoções tendem a minorar com o tempo. E é sempre no “agora” que as atenções se direcionam.

Lembro do caso da Leidinalde, que teve a energia cortada numa sexta feira à tarde, recém saída de uma cirurgia, divorciada, e com três filhos pequenos, sendo que um deles recém-nascido. O corte se deu pelo fato de que os responsáveis pelas anotações da CPFL esqueceu-se de registrar um acordo de parcelamento de débito de energia que a Leidinalde havia feito junto à própria CPFL, três dias anteriores à fatídica e negligente efetivação do corte. Revoltante. Perdi o sono.

Leidinalva veio-me pela Assistência Judiciária da OAB, cujos honorários são ofensivos à dignidade do advogado, tão ínfimos que são.

Os agentes da CPFL sequer se preocuparam em confirmar a versão da Leidinalde, no que diz respeito ao acordo efetivado anteriormente. Era sexta feira. Foram logo sacando de seus “armamentos” e deixando em angústia uma cidadã extremamente necessitada, e além de tudo, com a razão absoluta. A vizinhança toda acompanhou seu desespero, diante a frieza dos agentes da CPFL. Vexamitoso, vulgar, covarde, imoral!

Leidinalde ficou o fim a sexta à noite, sábado e domingo inteiros e meia segunda feira sem energia. Criança chorando, doente, faminta, carente, leidinalde acamada, recém-operada, desamparada, a vida, a vizinhança, o vexame, o caos...

Perdeu os alimentos frios que havia comprado naquela mesma tarde, a criança recém-nascida prescindia de um aparelho que ficava ligado na energia, além de todos os outros transtornos que a falta de energia elétrica gera à humanidade atual.

Chegou-me chorando, pálida, olheiras profundas, marcas da tristeza e da ofensa sofrida. Sua dignidade veio a frangalhos! Não havia mais sequer um resquício de auto-estima. Sequer se banhara naqueles dias. Estava agora completando a segunda feira, antes do almoço, quando me procurara. Saía já para as refeições. Almoço cedo. Onze horas já sinto aquela fome inerente ao almoço. É o dito relógio biológico regulado.

Vendo aquela senhora voltei a sentar estremecido na cadeira, como que vendo o corpo desabar. Ouvindo=a, então, causou-me um nó na garganta. Senti-a fechar. A visão ofuscando-se, tentei conter as emoções, afinal, era um causídico “experiente”. Pudera, tem coisas na vida, por mais tempo de vivência que o cidadão tem, na hora a coisa aperta. Outro dia vi uma reportagem em que um delegado aparentando longa data de atuação, chorou de frente às câmeras descrevendo um ocorrido, e dizia: “... em meus mais de trinta anos de carreira nunca vi uma coisa parecida!”.

Comecei a anotar o que Leidinalde ia me dizendo. Trêmulo, pressionava a caneta sobre o papel. O que era aquilo que me impulsionava daquela forma? Que força estranha fazia com que meus nervos ficassem à flor da pele?

Não almocei naquele dia!

Cravei uma Medida Cautelar “inaldita altera pars”, com sangue, no papel A4 e em mais ou menos uma hora consegui o despacho favorável do Nobre Magistrado! A energia fora religada no mesmo dia, à tarde, como fora cortada, e Leidinalde veio me agradecer. Ali foi a verdadeira recompensa!

No dia seguinte comecei a preparar a Ação Indenizatória, mesmo que não acobertada pelo tal Convênio da Assistência Judiciária da OAB. Como Leidinalde não tinha condições de me pagar honorários particulares, me contentei mesmo com os possíveis sucumbenciais, que certamente viriam.

Pedi cinqüenta mil reais, fizemos um acordo nos trinta! Como sempre acontece numa situação dessas, quando me deparei com a decisão, após a audiência, rumei para casa tomar um porre de lavar a alma! “Felicce” da Silva!

Outro caso, esse mais recente, porém não inferior de emoção do que o acima citado, foi o caso do Ademir.

Ademir, negro e pobre, máculas no ideário preconceituoso da sociedade, havia acabado de sair do colégio à noite, onde cursava o primeiro colegial e rumava pra casa. Numa esquina onde traficantes armaram seu negócio, Ademir, despreocupadamente, sem saber, encontrou um colega que desesperadamente lhe pedia dinheiro. Provavelmente para consumir drogas. Como Ademir não tinha dinheiro nem pro lanche da escola, muito menos o teria naquele momento para ajudar aquele suposto dependente. Disse que não tinha, até mais..., quando uma viatura da polícia, subindo loucamente na calçada, fechou os dois na parede, com sirenes ligadas e armas em punho: “Mão na cabeça, vagabundo! E vai passando logo a porra da droga!”.

Ademir, inocente, cadernos abraçados no peito, tentando murmurar alguma defesa imediata, motivada por impulso, levou logo um violento tapa no rosto, vindo seus cadernos a se espalhar pelo chão. O mesmo policial os chutou com raiva.

O dito colega se desvencilhou do policial que o segurava e conseguiu sair correndo tanto que sequer os policiais tiveram reação de persegui-lo. Ficou Ademir como “boi de piranha”, deixado à sorte de “criminosos institucionalizados”, o que por vezes é bem pior.

Levado aos sopapos para a delegacia, apanhou feito um porco naquela noite, passando a madrugada encarcerado.

No dia seguinte, recebi uma ligação e por trás dela uma voz feminina dizia que eu precisava ir à delegacia ver o que estava acontecendo com um adolescente que havia sido preso pela polícia. Perguntei o óbvio, quem era, nome, quem arcará com honorários, etc.

Recebi um pouco de dinheiro antes mesmo de ir à delegacia, me inteirar dos fatos. Dizia a senhora, que era a tia do Ademir, que ouvira alguns relatos de que eu “era bom naquilo”. Confesso que fiquei até emocionado com aquelas palavras. Numa sociedade tão egocentrista como a nossa, são raras as expressões de reconhecimentos do trabalho alheio, ainda mais de um advogado quase anônimo como eu, dentre milhares que “atuam” neste mundão.

Fui lá. Era, como sempre, hora do almoço. Encontrei um descaso tremendo me esperando, quase que hostil. Como sei de meus direito, fui “metendo a cara”, até que fiquei cara a cara com o tal Ademir, fechado nós dois na cela. O jovem chorava, sem camiseta, deixando transparecer hematomas por todo o corpo. Fui questionando-o e me convenci de sua versão. A todos que procurarem um advogado, pelo amor de Deus, o convença de que você está falando a verdade, pois só assim, face a face, sentimentos aflorados, é que atuarão com mais afinco. Num primeiro contato isso é imprescindível, uma vez que o mesmo não tem acesso à documentação e demais provas, é a palavra inicial do cliente que faz a diferença. Se demonstrar frieza ou desinteresse, o “ânimo” do causídico pode vir por água a baixo.

Ademir me convenceu de plano. Sua expressão denotava toda sua indignação. Além do mais as provas subseqüentes me foram por demais convincentes. Seus estudos, sua vida pregressa, sua família, depoimentos, testemunhas, namorada, emprego fixo, tudo, absolutamente tudo indicava que os policiais abusaram do poder que o Estado lhes proporcionava, como é comum, todos sabem, não generalizando, obviamente.

Receberam uma denúncia anônima relatando a freqüente traficância naquele local só que não se atentaram aos supostos autores, pegando os primeiros que viram na esquina, ou seja, um usuário e um estudante, fora da tipificação penal.

O pior, como o usuário fugiu, restou-lhes levar o outro. Afinal, era preciso mostrar serviço naquela noite, estavam muito apáticos em suas atuações, lhes dissera dias antes o Ilustre Promotor de Justiça.

No dia seguinte, como é de praxe com relações a menores de idade, como recomenda o ECA, fora Ademir encaminhado ao Promotor, que o Representação por desacato e agressão aos policiais, que disseram que o jovem havia lhes ameaçado e lhes dado um soco. Ademir, indignado, na tentativa de se explicar, se debatia e, numa dessas, acertou o braço no rosto de um deles, que não quis nem saber, foi logo dizendo que fora agredido, não tinha nada a perder. Afinal, em sua mente Ademir era mais um desses malditos traficantes, era negro e pobre, como supunha.

Na audiência do dia seguinte vi-me dentro de uma das maiores batalhas campais que já tive em uma audiência. Por um lapso não houve vozes de prisão de todos os lados.

Promotor e Juiz, em suposto conluio e claramente surdos, decidiram manter a internação. Naquela noite não dormi e nem bebi, fiquei preparando um “habeas corpus” revoltado ao Tribunal.

Por fim, depois de algum tempo, com a família me atazanando, consegui a tomado do corpo vivo de Ademir à liberdade.

Numa tarde, passados uns quinze dias de sua soltura, apareceu em meu escritório e foi logo dizendo:

Doutor, agora presto mais atenção por onde ando!”.

Savok Onaitsirk, 14.05.10.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 25/10/2010
Código do texto: T2577181
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.