A Primavera de Catarina Alves e o Inverno de Adriana Calcanhotto

A Primavera de Catarina Alves e o Inverno de Adriana Calcanhotto

Há quem, para dizer coisa que não envergonhe alma medrosa, recorra à nicotina ou à cafeína, ou mesmo a doses de estímulos inconfessáveis; eu Graças a Deus preciso apenas de doses subtis de boa música. Mas não qualquer música: preciso encontrar a música exacta de cada coisa. A minha. Porque cada qual terá de encontrar a sua.

Mal a Catarina me condenou a escrever qualquer coisa sobre a sua exposição, corri a escolher uma mais à mão. Por uma faísca de tempo, hesitei entre Norah Jones e Adriana Calcanhotto.

Qualquer coisa quase indizível, porém palpável, um sexto ou um sexagésimo sentido, um gosto matutino ou uma aversão vespertina, algo fundo ou um capricho do momento, sei lá o quê, levou-me a Adriana Calcanhotto.

Catarina e Adriana? Que terão estas duas em comum? Não convencerei um coxo se disser o óbvio: são ambas mulheres. E pouco adianta dizer que as duas se exprimem na mesma língua: português. Mas já adiantará qualquer coisinha dizer que ambas se exprimem na mesma linguagem: arte.

Como? A matéria de Adriana é a escultura dos sentimentos e das ideias nas palavras através da voz, a de Catarina é a escultura dos sentimentos e das ideias na madeira, no gesso e outros materiais através das mãos.

Mas há diferenças: no seu álbum, Adriana derrama uma serenidade desconfiada de urbana magoada, Catarina nos seus trabalhos espalha uma serenidade confiante de rural contente. A primeira canta o Inverno, a segunda esculpe a Primavera.

Catarina é uma mulher a saudar a vida de peito aberto. Mulher de talento e de garra com vontade de lavrar novos futuros na sua arte. Adriana é uma mulher endurecida a queixar-se das desfeitas da vida.

Uma tarde esquecida do ano passado, a Catarina apareceu-me pela frente. Nunca a vira antes. Lutadora, vinha à procura de emprego. Corajosa. Não lhe pude dar o que mais queria naquele momento, mas, por uma música íntima que nela soava, uma espécie de odor em forma de notas musicais, dei-me conta que lhe dava algo que também queria: este desafio. Discutimos sem olhar ao relógio, ficou combinado: vamos antes esculpir juntos o tema. Quando soou a hora ouviu-se a música certa: a Primavera. E o espaço: do jardim e da casa brotariam coisas tal como estas coisas brotam das casas e das árvores na Primavera.

Assim, das árvores primaveris, da minha giesta, do meu plátano, árvores que há duas décadas ajudei com minhas mãos a nascer, surgem símbolos palpáveis da vida: casulos. A abrir. Prenhes de vida. E outros regalos. E do salão, no interior da casa: cabeças. Serenas, seguras e tão certas como ser o dia 21 o início oficial da Primavera. Oficial. Porque aqui ela começa na noite das Estrelas com os primeiros incensos.

Mário Moura

16 de Março de 2007

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 29/10/2010
Código do texto: T2586279
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