"CAFÉ COM PÃO. PÃO COM MANTEIGA."

Outro dia... Um dia desses... Devia ser meio dia e meio... Estava muito atrasada para uma sequência de compromissos. Dirigi-me às pressas a uma parada de ônibus. E logo de longe avistei uma mulher maltrapilha sentada em uma das cadeiras da mesma. Chegando lá percebi que ninguém mais ousava se aproximar. Sentei-me à distância de duas cadeiras dela. Ela estava vestida com um sutiã verde claro, velho, sujo e com alças arrebentadas. Da cintura para baixo usava uma bermuda masculina, que poderia ter o número quatro pontos acima do que ela vestia, e por isso ela improvisara uma tira, de trapo qualquer, para cingir-lhe a cintura. Sua aparência assustava. Estava suja e fétida. Os cabelos curtos estavam híspidos. A pele negra parecia ser realçada por uma camada de poeira convertida em lama pelo suor de seu corpo. Ninguém se aproximava ou deixava as crianças se aproximarem. Ela olhava com olhos cabisbaixos e desconfiados e até por vezes indiferente, sem entender. Parecia que já havia se acostumado com aquelas atitudes, ou as mesmas, de tão corriqueiras, já não a feriam. Lembrei-me que, há algum tempo atrás, a vi abaixando a roupa e fazendo xixi na frente de todos numa das ruas que cruzam o coração da capital. E, se não me engana a memória, parecia-me a mesma que, a um tempo ainda mais distante, havia visto sem roupas andando pelas ruas. Naquele tempo, por coincidência, trazia nas mãos sacolas de compras de lingerie, mas eram inadequadas para cobri-la, pois eram muito sensuais. Além do mais não sabia como me aproximar dela. Os homens que estavam ali olhavam-na e depois para nós mulheres que estavam por perto, com tal malícia que parecíamos também estar nuas. E sentindo-me invadida e desrespeitada, por aqueles olhares, peguei o primeiro ônibus que apareceu. Agora ali, naquele momento, em que discretamente revezava minha observação entre ela e os ônibus que passavam, percebi que ela conversava sozinha ou quem sabe com algum ser espiritual. Falava coisas entrecortadas. Saltava de um assunto para outro em frases curtas e por vezes soltas sem uma continuidade. Era como se sua memória não visualizasse um fato de forma global, mas apenas fragmentos que emergiam no mar morto de suas lembranças. No entanto, uma frase se destacou das demais: ”Não, não falta muita coisa, não. Só falta o café e o pão... pão com manteiga”. Mal tive tempo para ouvi-la e pulei dentro do ônibus que aguardava e que chegara. E segui triste, sem ter encontrado como ajudá-la. Pensei em dar-lhe algum dinheiro, mas talvez ela não soubesse utilizá-lo e não tinha nada nas mãos que servisse para alimentá-la. E assim comecei a refletir. Aquela mulher, para todas aquelas pessoas parecia um monstro, mas eu nunca havia visto seu rosto na lista dos condenados por crimes contra humanidade, e nem nas páginas policiais daquela localidade. Era tida como louca, mas a razão nem sempre tem muito valor, pois foram pessoas dotadas desta que jogaram as bombas atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Aquela mulher não tinha face de anjo, não em corpo, mas em alma era bem possível. E por que todos temiam se aproximar, inclusive eu mesma? Como se aproximar? O que dizer? O que fazer? Como resolver? São tantas perguntas para tão pouco tempo. No entanto, a frase dita por ela expressou algo que, sendo loucura ou não, representou uma singela lição. Quanto de nós, por muito menos, possuindo casa, carro, plano de saúde, alimentação saudável, dentre outros, passa a vida lamentando, achando que falta ainda muito; outros tantos cometem crimes, de corrupção e outros, para manterem seu pedestal de grandeza e de luxo, e aquela pobre mulher, sem casa, sem o mínimo de condição que expressasse a dignidade humana ainda assim era muito mais digna do que muitos de nós, considerados normais, possuidores de razão. Não estou pregando aqui nenhuma forma de conformismo, principalmente com a miséria. Acredito que cada um de nós deva lutar por condições de vida melhor para nós e nosso próximo. Penso apenas que este evento nós ensina a nos posicionar quando a tristeza ou o vazio nos visitar, nos momentos de solidão, frustração ou derrota, ajudando-nos a ser fortes o suficiente para dizer: Não, não falta muita coisa, não. Só falta o café e o pão... Pão com manteiga”.