Quatro lados em forma de caixa

As histórias de Dona Angélica, cabem todas num baú. Não que sejam poucas. Mas apenas algumas, são de fato verdadeiras.

São cartões, cartas, flores secas, dentro de livros antigos e agulhas de tecer.

Cada conto da vida resvala sempre para o esquecimento. Lembrar é para poucos. Porque a natureza se encarrega de transformar toda dor e alegria antigas, numa nuvem sem forma. Ou então, como a pessoa que se vai pelo caminho, esta se integra à perspectiva. E mesmo permanecendo eternamente no mesmo caminho, cada passo o torna menor, para o observador que fica.

Dona Angélica sempre desejou. Sempre quis. Isso, com sua voz em surdina. Uma voz miúda. Pequena. Mas esperava mesmo, é ser desejada.

Ninguém como dona Angélica, sabia organizar as lembranças. Especialmente as do baú. Ninguém como ela, sabia tornar os erros bens maiores.

Ninguém sabia, como ela, assentar-se na varanda à tarde, e com seu pão de queijo e sua xícara de café, provar para o mundo, que caminhar até ali, valera a pena. Somente o aroma do líquido, as cicatrizes na perna das muitas surras, e o anel de ouro, presente do filho, já eram prova suficiente: Não acreditar na matemática, é necessário aos menos preparados para a vida.

Menos do que poderia supor, a melancolia viria, após o primeiro gole. Porque não estava sozinha de todo. Estava, na verdade, acompanhada de toda sorte de fenômenos climáticos, de animais prosaicos, e de pinturas na parede. Mas antes de tudo, deveria haver ali, um pingo de clemência para com quem seguiu o curso natural da vida. E isso estava além de suas possibilidades.

Da caixa de madeira, saiu um livro de poemas antigos, que costumava recitar à noite, para os meninos agregados. E era professora. Daquele tipo que não se esquece nunca. Numa das páginas amareladas, estava escrito em caneta de azul já esmaecido: “Teu olhar é como renascer”.

Isso, nunca descobriu quem foi que escreveu. Mas somente de tempos para cá, vendo sua pele enrugada no espelho antigo, pôde perceber o que elas diziam. O rosto estava destruído. Destituído da pouca beleza. Mas os olhos, não mudaram muito.

Dona Angélica não deseja mais muita coisa da vida. Nem pode. Porque o desejo pode acelerar sua inevitável morte. Esta que finalmente libertará o mundo, do compromisso de suportá-la. De ter de sustentá-la, para provar a quem quer que seja, que há outras formas de se renunciar à vida.

Dona Angélica, nem se dá conta, de tanto significado. Mas desconfia, principalmente quando vem a noite. É nesta hora, que toda a história se confunde com a imaginação. E mesmo estando quase morta, pode se ver como uma velha menina de fazenda, tecendo alguma coisa sem forma, para justificar sua permanência na vida.

Os poemas, estes, já não são mais lidos. Não por preguiça. Mas por piedade. O que tortura o homem, não é a culpa. É a possibilidade. E assim, sem entender como tudo não foi diferente, é que ela dorme. Agora, para sempre, na varanda casa, sobre o baú de 1938.

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 09/10/2006
Código do texto: T260116