D. SEVERINA, MATRIARCA DO AMOR

D. SEVERINA, MATRIARCA DO AMOR

Amamos as nossas mães quase sem o saber e só nos damos conta da profundidade das raízes desse amor no momento da derradeira separação.

Guy de Maupassant

“Minha mãe foi a mulher mais bela que jamais conheci. Todo o que sou, lho devo a minha mãe. Atribuo todos meus sucessos nesta vida ao ensino moral, intelectual e física que recebi dela.”

(George Washington – Pensador)

Naquela manhã do mês de agosto do ano passado - 2009 - ela deixava o Pronto Socorro Cardiológico de Pernambuco –PROCAPE, em minha companhia. D. Severina se mostrava feliz por estar revendo a claridade do sol que, por feliz coincidência, fazia-se mais brilhante que em outros dias. Imaginou não poder mais revê-lo, depois de permanecer vários dias na UTI daquele hospital. Na ocasião me perguntei por quanto tempo mais a teríamos conosco: dois, três, ou seis meses? O criador determinou para ela pouco mais de seis meses de vida...

Próximo do Natal lembrei do regozijo de ela estar entre nós, depois de tudo por que passara; que agradecesse a Deus por tal júbilo. Aquela mulher de fibra, interiorana de Vitória de Santo Antão, curtida na luta pela sobrevivência estava meio acabrunhada, enfraquecida, embora o disfarçasse. No ano novo tomou novo ânimo e reuniu toda a família, como costumeiramente o fazia; convidou outras pessoas mais achegadas entre as quais, Rita, sua ex-nora. Tinha o pressentimento que aquele seria o último final de ano com os filhos. E foi...

Há algo de estranho, algo de misterioso, de insondável, de oculto a acometer as pessoas na aproximação dos últimos dias de vida. O mês de janeiro transcorreu normalmente no qual ela manteve a instabilidade, permeada aqui e ali por surto de vertigens que a deixavam mais combalida. Até que houve a fatídica queda e, a partir daí, notei uma grande transformação em seu estado geral.

Passou a alternar períodos com lucidez e desconhecimento, meio alheada perante as coisas em seu redor. Em trinta e um de janeiro, aniversário de Edna, ela estava mais abatida, pálida, meio distante como a antever o fim que se prenunciava. O quatorze de fevereiro, sábado gordo de carnaval de que ela tanto gostava, a encontrou no limite da exaustão.

Saí de sua casa às vinte e duas horas, após esperar a chegada de minha irmã, Nilda, vinda do plantão no ministério publico naquele dia; pensei até em dormir lá, mas, depois, mudei de idéia... Lá para tantas da madrugada recebi o telefonema de minha irmã, Edna, a informar o agravamento do seu estado de saúde; a ambulância, solicitada, estava em caminho.

Cheguei a tempo de vê-la, débil, ser transportada de maca até a ambulância e daí para o hospital Alfa. Não imaginava ser a última vez que a veria na sua querida casa. Foram vinte e sete dias entre a vida e a morte, alternado por raros momentos de percepção, o principal deles na terça–feira, dia nove de março, quando ela abriu os olhos, mostrou uma fisionomia expressiva e pareceu se despedir ao fitar cada um dos filhos, Vilma, d. Filó e Rita; fez inaudito esforço para falar algo.

Não conseguiu. No final da visita daquele dia o médico mostrou satisfação e surpresa por sua repentina melhora e prometeu retirar o tubo que a impedia de falar. Entretanto, eu e minha irmã mais velha nos indagamos e nos surpreendemos com a súbita melhora; conhecíamos a tradição oral transmitida pelos mais velhos a dizer ser comum a melhora repentina de doentes em estado terminal. Apesar disso, saímos do hospital com a esperança de uma melhor seqüência em sua recuperação. O outro dia seria decisivo. Que frustração! Minha irmã Elizabeth, ao chegar para a visita, logo na entrada da UTI, foi abordada pelo médico e avisada da piora do seu estado.

Os dias subsequentes repetiram igual situação; notei a progressiva queda da batida do seu frágil coração; no final da visita da véspera de sua morte recebemos a confirmação indesejada: a situação era gravíssima, sem possibilidade de melhora, dada por meio de metáforas e palavras cifradas das quais os médicos são mestres; desvaneceu-se nos filhos qualquer esperança em sua recuperação...

Saí do hospital nesse dia a imaginar quanto tempo mais duraria aquela agonia; alimentava no fundo da alma a esperança de ela demorar mais alguns dias naquela situação desfavorável. Egoísmo de minha parte? Não. Custava aceitar o inevitável desenlace final. A infausta notícia chegou na madrugada por telefonema dado por Edna. O hospital solicitou a presença dos familiares, pois sua situação havia piorado; compreendi de imediato que ela havia falecido.

A notícia nos foi dada por um médico, indiferente, frio, distante, profissional acostumado a dar esse tipo de notícia desinteressado da comoção causado aos familiares: — Às doze e quinze da madrugada ela, após várias tentativas mal sucedidas, não havia reagido e falecera;” quão doloroso foi para mim, Nete e Vilma naquela hora... Como gostaria de ter estado presente ao seu lado no derradeiro momento, no último suspiro, mas, assim, não quis o criador; como na letra daquela musica “disse adeus sozinha” D. Severina, nossa mãe.

Como foi duro ver seu corpo inerte, todo enfaixado, ali naquela dura pedra do necrotério do hospital, naquele lugar lúgubre, sombrio! Com resignação, num esforço sobre-humano, ajudei o empregado da funerária a vesti-la e depois com a ajuda de Vilma, minha mulher, colocamos o caixão no carro funerário. Por fim, no velório, acompanhei passo a passo o enfeitar do caixão onde cada caule, cada flor ali depositado era intercalada pelas lembranças de sua convivência, já tão saudosa.

Sob lágrimas, num flash back, vieram as recordações, os momentos marcantes de sua luta; do seu espírito indômito ao afrontar o preconceito sócio-étnico dos seus pais nos anos quarenta, sair de casa para se juntar e casar com meu pai; do comandar o barco do cotidiano no qual os tripulantes, seus filhos, sempre chegavam a porto seguro, depois de contornadas ou vencidas as tempestades surgidas.

Do subtrair tostão por tostão de cada ano, antes de começar a trabalhar, para conseguir comprar as roupas de Natal para cada um deles; do ingente sacrifício de passar quase um dia inteiro de plantão para conseguir a matrícula dos filhos no colégio Estadual de Pernambuco e, depois, no Joaquim Nabuco; do dia em que ela, literalmente, armou-se para tomar satisfação com aquele ex-genro que tentara agredir sua filha;

Via-se, pois, que o espírito do homem do interior nela se amoldava por ser “a alma de um matuto inerte ante as influências que a agitam. De acordo com estas pode ir da extrema brutalidade ao máximo de devotamento", como afirmara Euclides da Cunha.

Alberto Pimentel, de quem ela tanto gostava, reforçou a afirmação do escritor carioca ao defini-la como uma ave que protegia seus filhotes debaixo de sua asa com todo carinho, com toda abnegação e, mesmo assim, ainda deixava uma brechinha na qual ele também ali se aninhava. Sua ex-vizinha e amiga de mais de cinqüenta anos, D. Noca, exclamou emocionada ao vê-la vencida pelo último combate: MORREU UMA GUERREIRA!

Por que guerreira? Porque havia acompanhado de perto a luta daquela mulher baixinha, matuta, de pouca instrução, mas detentora de personalidade forte, perseverante, disposta ao bom combate, se possível, a ir às vias de fato como afirmei acima, que incutiu em cada um dos filhos o gosto pelo estudo, o respeito a si próprio e ao próximo; era a “matriarca dos tempos modernos” como a chamei em crônica passada. Toda matriarca é mãe; porém,, nem toda mãe é matriarca. A exemplo daquele conhecido político recém homenageado, era, também, feita de FERRO E FLOR. Assim era minha mãe. Gigante na tempestade; madre Teresa na calmaria.

Agora, no lugar onde existia amor transbordante há uma saudade silente, sofrida, chorosa; infelizmente nós, filhos e netos, não teremos mais a fonte na qual satisfazíamos a sede de carinho e solidariedade. Sentiremos até mesmo falta dos desencontros em família, pois dessa essência é feita a alma humana. Esperamos do grande arquiteto do universo a compreensão para recebê-la com indulgência e, após a purgação dos seus defeitos trazidos da terra, a coloque o mais depressa no pedestal merecido.

Sei que houve o antes e haverá o depois dela; torço para que subsista pelo menos um pouco do espírito gregário semeado por ela entre os filhos, netos e nora. Estes, num preito de gratidão, agradecem ao criador por ter colocado em seus caminhos o altruísmo dessa pessoa, disposta, sempre, a abrir mão do benefício pessoal em favor deles.

No final, o desejo de todos para que Deus permita e ela continue a espalhar os raios de luz de seu amor, a iluminar a longa caminhada ainda a ser percorrida por todos nós. Obrigado D. Severina, obrigado Boba, obrigado Biu, obrigado Ina, obrigado guerreira, obrigado nossa mãe. Até um dia! Recife, 12 de março de 2010.

ANTONIO LUIZ DE FRANÇA FILHO

Homenagem dos filhos, netos, nora e amigos.

Fone: (081) 30484538

e-mail:antoniofranca12@yahoo.com.br

ANTONIO FRANÇA
Enviado por ANTONIO FRANÇA em 17/11/2010
Reeditado em 04/10/2021
Código do texto: T2621178
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