O DEFUNTO FELIZ
O DEFUNTO FELIZ
Muito se fala dos fatos pitorescos que permeiam nosso dia-a-dia e nos fazem dar gostosas gargalhadas. Isso leva muitos a afirmarem que a ficção e a realidade de vez em quando se assemelham, indo uma ao encontro da outra. Aposentado, vez ou outra, recordo de fatos acontecidos no âmbito da CELPE, empresa à qual dediquei trinta longos anos de minha existência e que se amoldam inteiramente com o que vamos narrar.
O fato a ser contado não ocorreu, especificamente, no âmbito da empresa, porém, envolveu Gerson, colega de trabalho. Fui instado várias vezes por ele para assistir à peça O DEFUNTO FELIZ na qual ele era um dos antagonistas. Até que num dia de sábado em companhia de minha mulher, Vilma, me rendi àqueles reiterados convites e fui ao teatro Eufrásio Barbosa, no Varadouro, onde a peça era encenada. Em lá chegando, estranhei logo de início a pouca movimentação no entorno e a bilheteria fechada; logo descobri uma entrada lateral, e para lá nos dirigimos.
Fomos nos aproximando e vislumbramos uma porta entreaberta que deixava entrever o auditório.
Qual não foi a nossa surpresa ao avistarmos um caixão de defunto cercado por velas sobre o palco e um número considerável de contristados “expectadores”; minha mulher recuou bastante assustada... Tranqüilizei-a, afirmando “cheio de sabedoria” ser aquilo parte do cenário, pois o nome da peça não ensejava qualquer dúvida...
Mas, ao mesmo tempo, me perguntava por que Gerson não nos avisara do realismo do cenário, o que nos pouparia aquele impacto macabro. Então voltamos com a finalidade de comprarmos os ingressos, pois não seria elegante ter acesso ao espetáculo de forma graciosa; aguardamos alguns minutos e a bilheteria continuava fechada... Indaguei, então, de um dos boêmios que estava ali a bebericar o porquê de àquela hora continuar fechada.
Foi quando todo o equívoco foi desfeito; ali se realizava na realidade o velório do artista olindense conhecido como Pernalonga, que se notabilizara por suas performances no teatro de variedades Diversional Diversiones; na madrugada daquele sábado havia sido assaltado e ferido na veia femoral, causando sua morte.
Quis o destino que, até na hora final, o artista protagonizasse uma situação ambígua norteadora de muitos de seus trabalhos no teatro; ele que em vida exercitara como ninguém sua vocação artística e tivera uma existência conturbada ao assumir corajosamente seu homosexualismo.
Seu velório ali no teatro havia sido decidido de última hora, o que impossibilitara Gerson de nos avisar do adiamento do espetáculo naquele dia. Retornamos, então, eu e minha mulher, frustrados, com o passeio perdido, a comentar sobre as coincidências que a vida nos enseja e até mesmo num fato lutuoso como aquele não deixou de representar, literalmente, o tragicômico dos mais inusitados.
***
Enquanto isso... Pernalonga ficava à espreita, rindo desbragadamente, satisfeito por ter pregado mais uma peça (sem trocadilhos), agora na ribalta espacial, livre dos preconceitos que o macularam e o acompanharam durante toda a sua existência. Esses mesmos preconceitos culminaram, teratologicamente, em inibir o socorro por aqueles que o sabiam portador do vírus HIV. Dia virá em que veremos, finalmente, eliminados deste mundo às vezes cruel a terrível chaga do preconceito, propiciando (utopia?) um mundo melhor para as gerações futuras. Esperemos.
AUTOR: ANTONIO LUIZ DE FRANÇA FILHO. Academia Maçônica de Letras de Olinda — Cadeira nº 23 -LOJA MAÇÔNICA 12 DE MARÇO DE 1537-bairro novo/olinda EX-CELPE (decp, asad, divisão de leitura, departamento juridico)
e-mail:antoniofranca12@yahoo.com.br
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