TRIBUNAIS COTIDIANOS

O dia começou com reticências. O clima frio favorecia os movimentos aquecidos do pensamento. Contas a pagar, trabalhos amontoados na mesa, e algumas inquietações ainda não definidas - situações interiorizadas nos agasalhos possíveis. No trajeto normal, encontrei as mesmas pessoas que, todos os dias, vêm e vão paralelas na calçada. O que pensam?

O rapaz com a calça boca de sino segue badalando seus passos, a mãe leva a filha embrulhada na manta de lã para creche, a senhora de olhos tristes pintou o cabelo, o porteiro do prédio da esquina continua perfilado no portão, olhando o movimento... Tentei quebrar o gelo e cumprimentei a senhora, ela abaixou o olhar e não respondeu... Desisti de alterar os costumeiros encontros, pensei em como poderia ser perigoso quebrar a rotina dos momentos amanhecidos. Como nos comportaríamos nos próximos dias? Insistiríamos nos mesmos caminhos?

Atravessei o noticiário nos jornais pendurados na banca. Pensei em como somos cúmplices dos acontecimentos. As informações invadem nossa intimidade e devemos emitir nossos julgamentos. Guerra, petróleo, taxação de inativos, mulher com dois úteros, homem sem discernimento, tribunais, religiões... O que pensar?

Antes de chegar ao trabalho, já me sinto comprometida em inúmeros processos de conhecimento e decisões. Estar no mundo projeta, no caminho, a sombra de algumas percepções. No tribunal de minha intimidade, deixo que as mitológicas fúrias sustentem as acusações diante das justificativas divinas dos envolvidos. As palavras retalham a verdade.

São líderes norte-americanos, cubanos, ingleses, iraquianos, coreanos, chineses, brasileiros... Homens são dispostos nos papéis de acusados e vítimas, armados com discursos convincentes; organizações internacionais atuam na mediação dos conflitos e na desvirtuação das ocorrências com o brilho da armadura dos vitoriosos, e os jurados são escolhidos entre a alienação e a lucidez... A platéia, formada pelos que enfrentam as lutas diárias em busca das realizações possíveis, continua a marcha nos caminhos rotineiros.

Poucos representantes têm direito a expressão e ainda assim os enganos prosperam. Decisões globalizadas, trilhas individuais... A senhora de tristes olhos já chegou ao destino para mais uma jornada... Como ser imparcial?

Distancio-me do mundo comum e remonto o Areópago, o tribunal grego do lendário julgamento de Orestes pelo assassínio de sua mão Clitemnestra, instaurado com a nobre intenção da deusa Atena. Percebo que, entre os julgadores e as entidades mitológicas, estão os vencedores. Os vencidos sentam-se calados e remontam seus atos sob a ótica dos vitoriosos. As acusações tornam-se multifacetadas: o soldado que não combateu é condenado pela deserção e o que lutou é julgado por um crime de guerra. Alguns aplaudem os libertadores enquanto outros denunciam as veladas intenções dos invasores.

Entre os contemporâneos, um homem da platéia, ávido por um instante de fama, oferece um Prêmio Nobel aos comandantes da luta contra o Mal. Criou a oportunidade: um grupo de espectadores vaia, outro, aplaude. Os enviados dos diversos deuses proferem justificativas para seus discípulos, um grupo redige um manifesto de inconformidade, outro uma moção de apoio. Dissidentes criam novas religiões. Os vencidos permanecem calados. O que representa este silêncio?

Sou lançada abruptamente da Colina de Ares, no apogeu do meu delírio mitológico, pelas mãos de um menino de rua que me pede um trocado.

- Não tenho!

Afasto-me com a transparência do medo. Vivo entre os sobressaltos dos que ainda têm algo a perder. Apresso os passos e tento ver nas pedras da calçada se sua sombra me persegue. Um novo julgamento e o vencido silencia. Velhas notícias percorrem meu consciente: rebelião de menores, delinqüência infantil, fome, abandono, guerras urbanas... Curvei-me ao temor, meus passos aflitos foram uma reação moderada e legítima num contexto imprevisto. Condenei o menino?

Os vitoriosos impõem a democracia como a liberdade possível. Instauram um tribunal e avocam as funções de julgadores dos crimes praticados pelos inimigos, vencidos e aprisionados. Surtos de melhores consciências iluminam os ideais de justiça e disseminam os crimes contra a humanidade, representada pela minoria de poderosos. Onde estarão as fúrias, seres mitológicos, vingadoras dos crimes, que não mais acusam? E os deuses que não mais tentam estabelecer a verdade com jurados imparciais?

Fragmentada com tantos pensamentos, chego à repartição e busco, nos colegas, a compreensão de tantas inquietações. Mas os olhares convergem para novas questões: planilhas de metas de produção, mudanças no regime de previdência dos servidores, mobilizações, contas para pagar... Notícias singram o cotidiano, novas deliberações...

O expediente encerra com a ampliação de minhas preocupações. O mundo ou meu umbigo? Por instantes, sorrio pensando nos verdadeiros significados, na força que uma palavra pode assumir. Saio da repartição, tentando reunir minhas fragmentadas percepções... Será que a origem da palavra repartição estaria associada à ação de se repartir? Condeno o uso da palavra que parece quebrar mais a possibilidade de convergência.

O dia continua com reticências... Só podemos definir nosso papel no mundo enquanto não estamos condenados ao silêncio dos vencidos. Talvez amanhã, tente novamente cumprimentar a senhora de olhos tristes e, ao descer do meu imaginário Areópago, possa dar um trocado para o menino.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 20/06/2005
Código do texto: T26401