Se Meu Fusca Cantasse.

Dentre os três fuscas que tive, um foi especial.

Ano 76, bege, motor 1.300 e fodido. Mas me proporcionou liberdades extremas nos meus 19 anos de idade!

Foi nele minha primeira batida de carro, meu primeiro porre, meu primeiro cigarro e minha primeira transa. Nele aprendi dirigir na marra! Antes conduzia uma máquina estranha e perigosa.

Quando iniciei minha faculdade de Direito era com ele que me deslocava até a cidade onde cursava. Ia eu e mais quatro colegas.

Numa manhã chuvosa pegamos estrada rumo à faculdade. Era prova, não podíamos faltar. Éramos “maus-alunos. Chovia muito. O carro estava um caco, mas não imaginava eu as proporções, a ponto de supor que seu assoalho estivesse furado. Fomos perceber isso quando na metade do caminho... Um no banco trás, o Cachorro, num dado momento, disse, calmamente:

“O fusca está enchendo d’água!”.

Foi só falar que parece que as coisas começaram a acontecer. Momentos aqueles que se caso o cidadão não disse nada, nada aconteceria. As palavras adquiriram poder.

A cada poça d’água o interior do carro enchia mais... Prá piorar o freio pifou! Aparentava que estava no ferro, no talo. Além do mais, os limpadores não funcionavam bem, minhas notas e eu estava em atraso com as mensalidades! Êta fase dura, aquela!

Andavam comigo o Lou James Jr., o Belonha e o Cachorro, como dito alhures. O outro não me recordo quem era. Sei que todos estavam perdidos, porém prosseguindo...

Lou James virou poeta e cantor, Belonha farmacêutico e o Cachorro açougueiro.

Tínhamos muita fome àquela época, e sede também, e o dinheiro era escasso para todos, “universotários” que éramos. De alguma forma “vencemos na vida”, ou a vida fez com que aceitássemos sua imposição.

Chega uma fase da vida em que, cansados de lutar, deixamos as coisas fluírem naturalmente.

“... um garoto que queria mudar o mundo e que agora assiste a tudo encima do muro...”

Àquela época tinha o Caboclo como melhor amigo e confidente.

Jamais gostáramos de sertão, de festa de peão e coisas do gênero, mas éramos forçados a ir aonde ia a multidão feminina, nesta cidadela cão não comportava duas festas. Era uma por vez.

Uma vez me convenceram, como único que tinha carro, a ir a uma festa numa chácara dentro da cidade. Como não tinha muita opinião nem cabeça, aceitei, ávido por cerveja e mulheres. Como sempre, fomos em cinco no fusca, lotação ultrapassada, tendo em vista que daquela vez havia um gordinho chamado Wallisson, saído de uma república qualquer, mas que gostava de rock, cerveja e maconha. O gordinho era um absorvente de loucuras e nos deu trabalho naquela noite.

Resumindo, eis que não tenho muita paciência para relatos, não comi ninguém (dentro daquele fusca minha auto-estima não funcionava), bebi pacas e ainda soquei o fusca num poste, depois de entrar numa rua-descida sem saída e recém asfaltada. Entre na rua-descida e fui, com cinco bêbados dentro do carro pesado e com freios de bicicleta, só freando de um lado. Não sabia o que era aquilo, não entendia nada de carro e nem tinha grana para manutenções. Vendo que a rua era sem saída e que cairia num buraco, virei abruptamente o volante para a direita, tentando uma volta. Acontece que, sem freio, o carro foi derrapando e deu de frente no poste que havia no lado direito. Tinha que ter um poste ali?

Bateu de frente! Ficou até cômico aquele afundado arredondado no capou do fusca. E ficou até encravado no local. Lou James, tentando levantar a frente enquanto eu engatava marcha-ré para tirá-lo, sofreu um “coice” na canela, indo resmungando, bêbado, dormir aquela noite com gelo na perna.

Lou James possui outros relatos próprios em sua página no Recanto das Letras, onde expõe com propriedade e criatividade situações curiosas de sua passagem por este planeta, que perdura.

Naquela fatídica madrugada, fusca arrebentado, sem grana, fodido e sozinho, li um livro “espírita” que, dentre outros, colaborou para que fosse eu gradativamente mudando os rumos das coisas. O curioso é que grande parte das coisas da minha vida foram transformadas somente com “golpes de martelo”, pancada na cabeça. Nunca fui de ir acatando por aí passivamente situações ou idéias... Não era o “Charada”, mas carregava dentro meu bojo o “brasão” da interrogação, cravado, como símbolo de uma ideologia só minha. Não sei se deu certo, mas é fato que devido a isso não acumulei idiossincrasias, hipocrisias ou cismas. Para dizer a verdade, nunca fui de seguir o “leão da montanha”. Sempre preferi “cair no abismo”, mesmo que sozinho, para testar sua profundidade, ao invés de comer nas pastagens que me indicavam.

Não sei se isso é correto e nem quero que me sigam! Abomino o termo “seguidor”, motivo o qual não faço parte de “Twitter”, e, crianças: NÃO MO SIGAM! Nem a mim nem a ninguém! Trabalhem sua própria autenticidade, mesmo que direcionada a caminho totalmente diverso do que lhe propuseram! Persigam seus sonhos e acreditem neles! Só assim evitarão aborrecimentos com eventuais arrependimentos, pois arrepender de algum modo um dia estarão sujeitos, humanos que são, mas é muito mais doloroso se arrepender de atos ditados por outrem!

Voltando mais uma vez ao fusca, motivo desta perda de tempo, e da sua, talvez, que porventura esteja lendo agora esta crônica, ele, o fusca, explodiu numa tarde de outono.

Fazia um sol infernal, calor durante o dia e frio gélido á noite. Meu fusca mais manchado do que a “vaca do Pink Floyd”, vasando óleo e custando a pegar...

Era julho, época de festas juninas...

Enchi-o, o fusca, de fogos de artifício, banhei-o com gasolina, seu último banho e ateei fogo, com a bituca do “derby” que fumava na ocasião.

Explodiu num espetáculo esplêndido, incomensurável, inefável!

Passei por alguns processos, mas sobrevivi...

Foi lírico!

Depois disso resolvi consertar minha “barra-forte”...

Por último, dando razão o título presente, ia me esquecendo, os sons ouvidos no fusca eram:

“Cazuza, Legião Urbana, Marina, Chico Buarque, Engenheiros do Hawaii, Raul Seixas, Zé Ramalho, Alucinações Burocráticas, Ira, The Doors, Gipsy Kings (não sei se é assim que se escreve e nem ouvi mais), Men At Work, Oingo Boingo, Green Day, Bruce Springsteen, Dire Straits e Bom Jovi (que vergonha!), e o fusca em dado momento me acompanhava em refrão...”. É verdade!

Savok Onaitsirk, 26.05.10.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 29/11/2010
Código do texto: T2644159
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