Depois da chuva, o recomeço

Na varanda do casarão de fazenda onde trabalho vi a água da chuva ganhar todo o piso, lentamente, até chegar aos meus pés e me expulsar do banco onde admirava o aguaceiro cair do céu. Um único bueiro é responsável pelo escoamento e, claro, não consegue dar conta de tamanho volume. Pude admirar um pouco esta paisagem que adoro e em segundos me lembrar de um fato ocorrido na infância.

Morava num trecho da rua onde a água também escoava mal. Se a chuva fosse muito forte e durasse mais que 15 minutos, alagava a frente da minha casa e de mais alguns vizinhos. Meu quintal era longo, cerca de dez metros do portão à varanda. Uma grande distância para a água vencer, mesmo que chovesse muito e por muito tempo. Mas, um dia venceu.

Choveu pesado. Choveu muito. Era muita água descendo. E subindo. Chegou à calçada, passou pelo portão, rapidamente encheu o jardim. Da janela da sala acompanhávamos o trajeto dela chegando cada vez mais perto. A casa não ficava extamente no nível da rua; havia uma leve inclinação, o que aumentava ainda mais a nossa expectativa. "Será que vem até aqui?"

Por fim, aquela piscina enorme de água barrenta, se aproximou da varanda e ali pareceu ficar. Não subia e nem descia. Ficamos todos em suspense, tomando conta. A chuva estiou um pouco e logo voltou a cair tão forte quanto antes. Por poucos minutos pensamos que pararia novamente e a água, como sempre, retornaria à rua e tomaria o rumo dos precários bueiros.

Mas não contávamos com a participação especial de um caminhão naquela cena que não terminava nunca. Um basculante passou na rua, numa velocidade não esperada para a situação. E vimos a água tomar corpo numa volumosa onda e entrar pela sala, tomar o corredor, quartos e cozinha, deixando a todos com um olhar atônito e nenhuma noção do que fazer. A altura da cheia ficou pelos meus joelhos, o que na época correspondia às canelas de minha mãe. Sofás, camas, geladeira, fogão, armários tiveram pelo menos 30 centímetros afundados.

A água entrou, banhou a casa inteira, nos apavorou e em pouco tempo começou a baixar, juntamente com o estio da chuva. Tão rápido quanto entrou, foi voltando para a rua. A família, novamente na janela, olhava para fora – feliz – e para dentro – desolada. Hoje é engraçado recordar aqueles momentos, do quanto fiquei com medo ao ver a água cobrir metade das minhas pernas. E na varanda do casarão, me diverti com a chuva, seus trovões e relâmpagos, e com a água que insistia em alagar o piso e se aproximar dos meus pés.

Penso nas famílias que têm a casa inteira alagada, que perdem todos os seus pertences (às vezes quase não os têm) e que precisam começar de novo. No meu caso, lá na infância, este recomeço limitou-se a apenas um dia e meio de faxina intensa. E aqui no trabalho, retornei à mesa e reiniciei o computador, após a queda de energia.

A chuva de ontem me lembrou esta lição, a de retomar as rédeas da minha vida ao ponto de onde parei, seja qual for o motivo, recomeçando sempre, infinitamente, minuto a minuto. A vida nos ensina e nos exige isso.

Giovana Damaceno
Enviado por Giovana Damaceno em 02/12/2010
Código do texto: T2649232
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