NÃO É PARA SENTIR SAUDADE?

Acordei hoje, eram 5 horas da manhã, mas ainda embalado por um desses sonhos gostosos, tão gostosos que a gente nem abre os olhos, pedindo para não acordar e, quem sabe, continuar sonhando. Mas aí não tem mais jeito, o sonho já foi embora (que pena!) e a gente se levanta para a realidade, às vezes dura, do agora, do presente, do cotidiano.

Eu era entre adolescente e jovem e morava na casa número 14 da Praça da Purificação, em Santo Amaro, onde passei parte da minha adolescência e toda minha mocidade, enquanto solteiro. Morava com meu pai e minha madrasta, D. Dete, ambos de saudosa memória. Aquele lugar foi o cenário do meu sonho neste finzinho de madrugada.

O passeio lá de nossa casa era a sala de estar, onde se reuniam os amigos e os irmãos de meu pai, para maravilhosos bate-papos, mormente nas épocas de festa quando estavam presentes alguns que moravam em Salvador e religiosamente visitavam Santo Amaro nessas épocas.

Para mim aquelas reuniões eram o melhor da festa. Meu pai era um homem inteligente, bem informado, um excelente epigramista, amante da palavra escrita e falada, atraía para sua porta a nossa elite intelectual. Para mim verdadeiros monstros sagrados.

Se eu, que até hoje sou mais de ouvir do que de falar, freqüentador assíduo daquelas reuniões, eu era somente ouvidos, mas encantados. Eu era um componente da platéia e eles os meus atores prediletos:

Juca Salles, (José Gabriel de Salles Brasil) um ator genial, fazia rir e chorar, ora representando as suas personagens cômicas, ora contando os episódios dramáticos de São Bento do Inhatá, e da Vila de São Francisco, todos criados ou recriados por ele. Com seu jeitão descuidado de ser, cabelos por cortar, barba por fazer, e aquele corpo franzino, andando como quem pisa em ovos em virtude dos muitos calos que tinha nos pés, ele usava a sua voz de baixo profundo, os seus gestos, e as suas mãos esguias para nos fazer chorar de rir;

Professor Raimundo Salles, (Raimundo Nonato de Salles Brasil) o lirismo à flor da pele, sua poesia era de rara beleza, estava sempre a nos encantar com os seus versos, as suas trovas, os seus repentes, era um poeta de alma pura.

João Moniz Barreto de Aragão, outro grande poeta, (Santo Amaro é incrível!) o orador, mas, sobretudo o poeta, o declamador. Ainda o recordo e me deleito, ouvindo-o recitar Arthur de Salles em Subumbra, Praia em Festa, Ocaso no mar, amaciando a sua voz e dando mais colorido aos versos, como se, possível fosse, dar mais colorido aos versos do velho Arthur.

Souza Castro, (Antônio Benedito de Souza Castro) comedido, falava baixinho, mas todos nós tínhamos ouvidos atentos porque não queríamos perder uma só palavra do que ele dizia. Brilhante, o velho Souza Castro, o talento dele não se media pelos discursos, mas por uma palavra, um dito, uma frase. Um grande amigo, eu o amava como se fôra meu tio.

Nestor e Aloísio Oliveira, dois irmãos de talento fulgurante, dois poetas, se o primeiro brilhava com a palavra escrita, o outro era formidável no discurso improvisado, palavra fácil, fluente e bela.

Participavam daquelas tertúlias, uns, de forma mais assídua, outros esporadicamente, meu tio Adaucto, quando de férias, trazendo o seu entusiasmo, a sua maneira inteligente e simpática de ser e de dizer as coisas; o Pe.Salles Brasil, esquecia um pouco o papa e, espirituoso que era, deixava escapar a sua verve, o seu talento, a sua cultura, enriquecendo os nossos informais bate-papos; Adroaldo Ribeiro Costa, um artista, usava como poucos a palavra, a voz e as mãos. Passaram por aquela assembléia, Eliezer e Heráclio Salles, o Maestro Gomes e tantos e tantos outros dessa mesma estirpe. Até o poeta Eurícledes Formiga, a quinta memória do mundo, e repentista fantástico, que passou por aqui esbanjando talento, participou das nossas reuniões na porta da casa de meu pai.

O Professor Édio Souza, ainda bem jovem, freqüentava com assiduidade os nossos saraus e já deixava brilhar o seu talento. Ele não me deixa mentir.

Quando eu acordei hoje às 5 da manhã eu estava sonhando, exatamente, com uma dessas reuniões.

Não é para sentir saudade?

Raymundo de Salles Brasil
Enviado por Raymundo de Salles Brasil em 15/10/2006
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