ausência

existem ainda, na vida comum e urbana, infinitos mistérios. observemos uma madrugada de domingo pra segunda; é um momento místico, no qual a cidade parece povoada por espíritos, somente. particularmente, adoro escrever neste horário.

escrevo no escuro. é dezembro. raios me incomodam os olhos constantemente; pode-se sentir o cheiro da chuva condensada no ar, carregando também resquícios aromáticos de asfalto quente e grama. uma máquina parecendo um ar-condicionado faz o único barulho da noite: um ranger insuportável de engrenagens desajustadas.

todos os prédios estão mortos. poucas luzes de natal brilham aqui e ali, totalmente descompassadas e solitárias. brilham mais por obrigação do que por qualquer outra coisa. tem-se a impressão de que algum chinês escravocrata lhes disse, com chicote em punho: brilhem de forma intercalada por um mês! e elas obedecem até agora por medo de morrerem de fome.

os postes, subservientes, pintam de lúgubre laranja o que não é sombra na paisagem. fazem seu máximo esforço. passos? não... começou a chover. troveja um urso negro em algum sonho distante. na esquina uma lata de cerveja mantém-se bem conservada, observando tudo aquilo que pode, enquanto ainda pode, como por exemplo, as nuvens do céu cor de chumbo.

ouço alguns carros passando ao longe, poderiam muito bem ser carruagens para o além. na agência bancária da rua, acredito que habitam alguns fantasmas. tanta gente passa por ali diariamente, não é possível que ninguém decida ficar. e lá estariam as almas perdidas, olhando seus extratos, fazendo contas, pegando filas eternas num desconhecido círculo infernal de Dante, pelo qual Virgílio teve preguiça de passar.

pedaços de papelão são molhados e destruídos conforme a chuva se intensifica. foram abandonados por seus donos abandonados, que talvez estejam em outro lugar mais seco fumando crack... ou não. ou já estão mortos a essa altura.

Sartre escreveu que a morte é a continuação de sua vida sem você. contemplo esta madrugada e entendo plenamente o que ele quis dizer.

os pingos de chuva ficam mais fortes; o ranger mecânico parece querer competir com o desaguar. os fantasmas de todos os cantos agora se reúnem para compor na atmosfera um último requiem natalino; as luzes borram-se vermelhas contra o vidro da janela com cada vez mais ímpeto e vigor, e a calçada agora é totalmente negra.

é madrugada. nada acontece aqui, nada acontece até onde os limites da noite se dissipam, até onde a penumbra estende seus braços obscuros, nada ocorre. tudo escorre em solidão, timidez e medo, aguardando algo que jamais virá tirar todo este universo oculto do torpor e da ausência de si mesmo.

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suffocation - white ring.