Hoje, sem saber como, nem por que, comecei a  pensar em morte. Não que eu queira morrer, longe disso. Mas, fiquei matutando. Morrer, como será? O que acontece depois? Será que chega uma hora que descobrimos que estamos prontos para morrer? Ou será que esse momento nunca chega. Será que a tal morte nos assalta de mansinho, sem nos dar chance de nos defender, de solicitar uma prorrogação, ou nos leva sem termos tempo de afivelar as malas? Nem quero pensar. Acho que nunca estarei pronta. Mesmo porque estou apaixonada, só, mas apaixonada. Já pensou como seria? Outras maõs que não as minhas, a vasculhar meus poemas ocultos, a descobrir meus cabeludos segredos, meus escritos escabrosos... E, o que dirão da coleção de roupinhas sex que escondo na última gaveta do armário? Isso sem falar do trabalho que teriam para desnudar as paredes do apartamento... São quadros e mais quadros. Será que se dariam ao trabalho de ler esse monte de besteiras que escrevo e guardo por dó de jogar fora... E, meus retratos... São tantos. Estão nas paredes, nos móveis da sala, na sacada da cama, enfim uma enxurrada de eus a serem recolhidos. E os sapatos de número 34. Difícil quem queira.
      E quando começassem a revirar os armários... Nossa, quanta coisa, meu Deus. Durante centenas de anos acumulei coisas. Durante centenas de anos, perdí pessoas. Muitos se foram e eu cá estou. Mas, decididamente não estou pronta. Teria que me preparar...Rasgar um monte de papéis, pagar aquela conta que devo á Marinha pelo simples fato de morar junto ao mar.
     Nossa...E minhas árvores de natal? Que fariam delas? São tantas e tão bonitas. E, quem bateria á porta dos netos com aquele código que só nós conhecemos? Isso sem falar em alminha, minha poodle que é minha sombra. Já velhinha não iria aceitar outra mãe.
    E o mais crucial de tudo. Fiz um pedido a minhas filhas. Quando eu partir, que estiver naquela hora, durinha, só quero beneditas sobre mim. O problema é que, como são flores do campo, não se encontram á venda. Terão que percorrer os terrenos baldios á cata delas. Já até já recebí a proposta de uma permuta por rosas ou orquídeas, mas, não abro mão, só beneditas. E, por favor, me velem debaixo dos ipês amarelos da lagoa. Custa?
      Bem, vamos agora a trilha sonora. Lógico que quero. Poderá ser um fado de Amália Rodrigues, talvez Coimbra, ou mesmo uma de Flávio José. Sim, por favor, nada de café requentado em copos de plástico. Que sirvam um vinho argentino em taças de cristal!
     Quanto ao mais, nada de tristeza. Vivi muito e muito bem. Fui feliz em parte, e suportei as intempéries que a vida me aprontou. Amei bem mais que fui amada. E, tenham certeza, logo, logo, serei o tema das conversas dos almoços em família. Garanto que terão muito que falar. Não passei em branco.