Debaixo dos caracóis

Ouvia Gerardo e sua voz parecia tomar conta de todo ambiente e de mim, e de meu coração. E era pura tristeza sua voz, embora poderosa e num espanhol agradável de ouvir. E também essa tristeza fui absorvendo. Contava das atrocidades cometidas e enxugava furtivas lágrimas e eu me sentindo impotente para enxugar todos os rios de lágrimas de um país. Do Chile que ele amava sobretudo.

Falava das prisões e das vozes caladas e dos amigos e de um sonho que acreditavam bom e que foi sufocado. Falava do Estádio Nacional e das inomináveis torturas e dos sanguinários assassinatos ali praticados. Contra uma idéia. Quanto contou como quebraram as duas mãos do cantor Victor Jara para que não pudesse tocar seu violão, e o torturaram durante dias antes de matá-lo, desabou. E eu junto.

Patricio Ayala trabalhava na segurança do presidente Allende e também foi preso no Estádio. Escapou por fingir-se de morto, deitado no meio de dezenas de corpos. Diz sobre as torturas: “Bastava um tiro, mas eles gostavam de ver a nossa dor”.

Por coerência, continuo o mesmo idealista da juventude e nunca entendi nem admiti que alguém fosse morto por causa de suas ideias ou seus ideais, a não ser que sua aplicação se revelasse uma atrocidade, como o foram, por exemplo, o nazismo e o stalinismo . Por isso, sempre fui ferrenho adversário da ditadura brasileira. Da última, porque na anterior eu não existia ainda. Não peguei em armas, não preguei revoluções, mas minha voz sempre deixou claro o que sentia e sinto, mesmo que às vezes não fizesse qualquer efeito que não o de arrumar inimigos entre os professores.

Aceito morrer por um ideal, mas matar alguém indefeso apenas por seu ideal ser diferente é inaceitável.

Não poder sair de sua pátria é horrível. Ser mandado embora e não poder voltar, apenas por não concordar com os poderosos de plantão é um sofrimento insuportável.

A música “Debaixo dos caracóis de seus cabelos”, feita por Roberto e Erasmo Carlos homenageia Caetano Veloso, exilado em Londres, juntamente com Gilberto Gil. É de uma singeleza e de uma leveza tão doídas que não consigo não me emocionar quando a ouço, e alguém sempre me pergunta o porquê das lágrimas. Arrumo cúmplices, às vezes, mas há os que não entendem. São secos.