Comidas de Ano Novo


      
Não só as cozinhas judaicas e cristãs celebram festas com pratos típicos. Há quem adote a cultura de se comemorar o Ano Novo com peru ao forno ou à Califórnia, tradição repetida anualmente como símbolo do festejo. Nunca vi alguém, por aqui, jantar canjica na entrada de ano, nem mesmo um gostoso espaguete. Outras casas, mesmo com o peru à mesa, não dispensam bacalhau nem pernil de porco. Reservam tais comidas para o início do ano, como elas dessem sustança aos doze meses seguintes. Sem ser contra esse costume, sinto que a comida dá mais apetite quando sugerida pela vontade de comê-la e não apenas como imposição da festa. De repente, como desejo de mulher grávida, que exige do marido procurar até pitomba fora de safra. Essas fantasias não são apenas dos imperadores do Sacro Império, que, na véspera da coroação, pediam certos pratos para fazerem um bom reinado. Costumes como da China, entre centenas de iguarias; como a tradição germânica na qual Carlos III se deliciava com leitão cozido com mel da abadia franciscana.
       
       Prefiro o bacalhau à carne enxuta do peru. Por isto, buscar boas receitas: as inventadas em Portugal; as nobres “brandadas” parisienses; as com molho adocicado dos bretões; as cebolas recheadas com bacalhau picado e amêndoas do infante D. Henrique; enfim, o bacalhau “al ajoarriero das ventas castelhanas”, a gosto até do sonhador Dom Quixote ou dos conventos beneditinos, onde se servia esse peixe com acelgas ou repolhos, refogado na carícia e aroma de um vinagre suave. Quando com vinagre, jamais acompanhado com vinho tinto, mas, com um branco não muito seco, graduado. Dizem que o vinagre anula o sabor do vinho “rouge”. Não esqueço o maître francês, numa das entradas de ano novo em Paris, servindo-me filetes de bacalhau com refinado champanhe.

       Mas, bem perto do mundo dos “gourmets”, dos “cordons bleu”, um pedaço da pátria não tem o que comer, no quotidiano e também no dia 31 de dezembro. Essa realidade serve para se perguntar sobre os que passam fome, sem opção, no dia da grande festa. Festejam esta data? Sem comida que caracterize a entrada de ano novo, permaneceriam eles no ano velho ou no ano que nunca passou? Não acreditam em mudanças, nem de dias, nem de meses, tampouco de ano. Cerca de doze milhões de "brasileiras e brasileiros" restam distantes, ouvindo, quase como insulto, as cantorias, saídas pelas janelas dos banquetes: “Adeus ano velho, feliz ano novo! Que tudo se realize no ano que vai nascer. Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”.  A fome será a mesma que lhes dá a monotonia do tempo. Como membros da pátria alijada, vivem um tempo que se repete, que não avança, sem esperança, mesmo que lhes gritem: “viva o ano novo” e soltem aos seus vencidos olhos fogos de artifícios.