AMMORE ANNASCONNUTO

Um dia desses, enquanto trabalhava, ouvindo Ammore Annasconnuto, na voz de Celine Dion, entrou em minha sala uma colega de trabalho para discutirmos uma situação qualquer. Enquanto resolvíamos a questão ela fez o seguinte comentário:

- Nossa! Essa música me dá um sono!

De repente, um punhado de urgências tomou conta de mim. Uma urgência incontrolável de terminar logo o que a trouxera a minha sala, para não ter mais que sequer ouvir a sua voz. Uma urgência imperativa de escrever sobre as diferenças entre os seres humanos, do porquê uma música que faz tão bem a umas pessoas dá sono físico em outras. Uma urgência de acabar o expediente para ouvir as músicas que gosto sem ter que reparti-las com ouvidos profanos. Uma urgência de acabar de vez a minha própria existência compartilhada, à minha revelia, com sonolentos de Ammore Annasconnuto.

Às vezes penso que tenho sorte por encontrar patrões que entendem a minha necessidade de dar vida interior a uma de mim enquanto a outra lhes fornece o trabalho para o qual me remuneram. São inteligentes, graças a Deus. Nada como dar as ferramentas certas para cada trabalhador. Uma de mim, a que vive enquanto ouve música, libera a outra para as tarefas cotidianas. A outra, a que racionaliza, agradece à música, como a mãe agradece à babá que cuida de seu filho para que ela possa trabalhar despreocupada. A boa música me concentra , me põe atenta. Sono eu tenho quando a mente se exaure na tentativa de se manter boiando no raso das coisas.

Às vezes penso que nasci azarada por não ser sonolenta, como a maioria dos assalariados. Quando me ponho a observar os de mente inerte me dá certa inveja. Por que só não me levantar cedo, cumprir jornadas enfadonhas, e dormir com as galinhas? Uma televisãozinha aqui, um forrozinho ali. Por que não só sacudir o corpo e o cérebro com os ai, ai, ais e os tá, tá, tás? Por que não? Se isso basta a quem morrerá, de qualquer maneira, como eu morrerei um dia? Por que fui nascer da fornada dos que buscam outras freqüências? Por que o caminho até ao meu labirinto é tão sinuoso e nele só chegam, sem dor, as ondas sonoras esquiadoras?

Talvez sorte, talvez azar. Com o dom ou a maldição de perceber nuances. A única certeza que tenho é a de pertencer à classe dos que perpetuam belezas.