O PIAUÍ É LOGO ALI?

Depois de atravessarmos todo o sertão pernambucano, entramos em Araripina. De lá é quase um pulo para chegar àquele Estado que, olhado no mapa, tem mais ou menos o formato de uma lágrima. Ah se essa lágrima significasse água, muita água, cachoeiras, rios, praias. Mas o Piauí , como tantos lugares do Nordeste, incluindo o Sertão pernambucano, é seco. Árido como um mandacaru.

Em Picos cheguei à conclusão que eu havia entrando em outro Brasil de tantos Brasis. Um abafado esquisito e um calor insuportável.

Então prosseguimos, valentes. Nosso destino era Teresina. Um congresso nacional estava sendo realizado lá, nós heróicos representantes. De quê? Mais de quarenta graus queimando meus miolos, eu já nem representava a mim mesmo.

Uma pequena comitiva nos aguardava e eu sonhava com ar-condicionado e uma ducha refrescante. Infelizmente um dos organizadores do evento foi logo dizendo: todos os participantes ficarão num mesmo alojamento, uma espécie de centro esportivo.

Lamentei a falta de privacidade de um quarto de hotel, modesto que seja. Mas enfim... Não era uma viagem de férias.

Jogamos nossas malas e paciência nos quartos, eu liguei todos os ventiladores de teto, em desespero crescente procurava banheiros com água gelada. Em delírio imaginei um aqueduto vindo das montanhas da Suíça – ao abrir o chuveiro, as neves de Gstaad darão alívio a um pobre sofredor.

Refeitos, iniciamos um tour. A cidade fica entricheirada entre os rios Poti e Parnaíba. Depois os dois se unem e vão desembarcar no mar. Mar? Teresina é a única capital do Nordeste que não fica no litoral. Os teresinenses tomam banho de rio.

E se na Escócia existe o monstro Ness, aqui temos o monstro Cabeça de Cuia, habitante do rio Parnaíba. Dizem que era um pescador malvado. A mãe dele lançou-lhe uma praga e ele virou monstro. Só vai desvirar quando comer – não no sentido bíblico, please – quando comer 7 Marias virgens.

No centro de artesanato, comprei uns pratinhos de cerâmica e doce de buriti, a fruta-símbolo desta região. Um gosto meio ácido. A impressão que tenho é que só o buriti podia representar o Piauí – que rima horrível, mas fica assim mesmo. Em Recife, um colega de faculdade falava com saudosismo deste doce. Eu dizia: um dia vou experimentar. E aqui estou eu.

Por ser jovem – foi elevada à cidade só no final do século XIX – Teresina é divulgada para os turistas como uma cidade projetada. Parece mesmo. Não vi becos e ladeiras. Chamam-na também de “cidade verde”, é verdade, juro. Abaixo deste sol de rachar Teresina exibe parques – e pés de buritis, claro. João Pessoa também tem esse epíteto, cidade verde. Mas aí são duas coisas diferentes.

Nem só de turismo vivem os representantes – agora sinto-me embaixador do Cabeça de Cuia. Gente de todo o Brasil já se aglomera no auditório para falar de política e educação. Volto para o alojamento para mais um banho. No retorno, um senhor faz blém-blém com sua carrocinha de sorvetes. Me dê um, pelo amor de Deus.

Entro na plenária de bermuda e um sorvete na mão. Todos olham. Alguns de paletó e gravata. Outros de mangas compridas. Se assustam eles, eu me assusto. Gente, como eu poderia imaginar que com 40 graus, as gravatas eram o must do verão piauiense? E minha bermuda não é tão indecente, vai até abaixo dos joelhos; lambo o sorvete e me sento.

No final da tarde, já com Teresina na palma da mão, ouso ir ao centro sozinho passear. As avenidas são largas. E a prefeitura faz esforço para manter a cidade limpa. Então, ao atravessar de um lado para outro – surge uma nuvem de poeira de não sei onde. É poeira, é areia do deserto, é pó de fubá – é uma coisa que me ofusca e eu fico rodopiando cego no meio da avenida, os carros buzinando. Cabeça de Cuia me ajude! Socorro!

Chego ao outro lado tirando o pó da cara e dos cabelos. O que é isso?? O que é isso?? Um transeunte ri. Isso sempre acontece por aqui?, pergunto. É o vento com areia, diz ele rindo.

Nosso último dia na cidade verde. Sinto falta de mar. Mas não dá pra conhecer o minúsculo litoral do Piauí. Dizem que existe uma ilha linda no Delta do Parnaíba, Ilha Grande de Santa Isabel. Bem, quem sabe num outro congresso.

Nos levam para um bar quase fora da cidade, chamado Nós & Elis. Muito simpático. Cadeiras e mesas rústicas. Bebo suco de maracujá, ando precisado.

No ônibus, lamento o longo retorno e esta viagem por dentro de Pernambuco para “aferir os problemas das comunidades locais”. Porém entre serras e sertões, vejo gente bonita, pratos fartos, pequenas cidades que parecem aflorar dentro da vegetação.

Fizemos uma pausa perto de Salgueiro. Ao lado do posto de gasolina, uma casa bem pobrezinha.

Uma pesquisadora da nossa equipe disse que estava apertada, vai perguntar se podia usar o banheiro.

Ela volta rindo sem parar.

Explica que o banheiro estava interditado, teve que usar o “vê tudo”.

- “Vê tudo”? O que é isso?

Ela não pára de rir.

Nem eu nem ninguém sabia. E por fim ela revela a descoberta: “vê tudo” é penico.

Brasis dentro do Brasil.

Raimundo de Moraes
Enviado por Raimundo de Moraes em 23/06/2005
Reeditado em 16/10/2008
Código do texto: T27049
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