Anistiado
Rosa Pena
Ele tinha quinze anos em 1998, quando foi meu aluno.
Lucas era lindo, rebelde, irrequieto, atrevido.
Tentei inicialmente ganhar a simpatia e a confiança dele, para conseguir dar aula para a turma e por ele próprio. Queria ensiná-lo. Não tive muito sucesso no decorrer do ano, por vezes me pergunto se me esforcei de fato. Ele tinha horror a qualquer tipo de obediência e eu havia perdido um bocado da minha antiga paciência.
Era daqueles adolescentes que adoram zoar dentro da sala, amam infernizar a vida dos adultos, veneram mostrar aos mais velhos que o tempo deles “já era”. Nada parecia interessá-lo, exceto suas infernais bolinhas de papel, jogadas nos colegas quando eu estava de costas. Passei parte do ano tentando achar seus focos de interesse. Quase nada encontrei. Desisti.
Quando chegamos ao final do ano, ele era obviamente, um dos alunos que ficaria para a prova final. Avisei a turma que minha prova seria uma redação sobre os direitos humanos, visto que no dia 13 de dezembro daquele ano seria o niver de trinta anos do famigerado AI-5. Expliquei o que era o tal Ato Institucional n.º 5 — instrumento utilizado pelos militares para aumentar os poderes do presidente e permitir a repressão e a perseguição das oposições, criado em 13 de dezembro de 1968, no auge da ditadura militar de nosso país.
Conversamos sobre as barbáries cometidas pelos militares durante a revolução de 1964 e nos anos seguintes a ela. Jovens estudantes presos, surrados, idealistas mortos, a população impedida de expor opiniões, jornais fechados, torturas infindas, montes e montes de desaparecidos e de exilados.
Uma verdadeira afronta aos direitos humanos, com a desculpa de que era para o bem do povo e felicidade geral da nação.
Foi a primeira vez que vi um interesse enorme em Lucas. Virou outra pessoa. Olhos e ouvidos aguçados.
Subitamente começou a perguntar sem parar, se os militares ameaçavam a população do nada, se humilhavam as pessoas só por prazer, se obrigavam os presos a tomarem banho frio por economia, a comerem sopa de entulho, se proibiam o uso da TV, se impediam que se ouvisse música alta, se puniam namoros, se aconteciam surras sem motivos, humilhações na frente dos outros, enfim todas as espécies de afrontas possíveis.
Contei que era mais ou menos assim. Quem se mostrasse desobediente ao regime pagava caro. Autoritarismo total.
Perguntou-me, então, quando e como acabou este inferno. Respondi que acabou parcialmente com a extinção da ditadura militar. Mudança de poder. Que ainda existia, mas bem mais disfarçado. As injustiças e sede de poder nunca acabam. Apenas trocam de lados.
Sufocado gritou:
— Quem passou por isso e viveu é o tal anistiado?
Respondi que sim.
— Então, quando eu tiver dinheiro e sair de casa, serei um anistiado. Olha o roxo em minhas costas, e pergunte aos meus colegas quantas vezes viram os berros humilhantes que levei na porta do colégio por causa de um refrigerante. Sou filho de um ditador. Mas discordo de “poder” trocar de lado. Quando tiver um filho, ficarei sempre do mesmo lado, ao lado dele.
Não consegui olhar nos olhos de Lucas. Senti vergonha de fazer parte desta humanidade. Senti raiva de mim, por não ter sacado a vida daquele menino.
Apenas lembrei-me de Andrés Dominguez...
“Os direitos humanos deveriam começar em casa.”
Jurei jogar fora o bife de fígado que minha filha odiava comer.
2004
LIVRO PreTextos/rosapena
Rosa Pena
Ele tinha quinze anos em 1998, quando foi meu aluno.
Lucas era lindo, rebelde, irrequieto, atrevido.
Tentei inicialmente ganhar a simpatia e a confiança dele, para conseguir dar aula para a turma e por ele próprio. Queria ensiná-lo. Não tive muito sucesso no decorrer do ano, por vezes me pergunto se me esforcei de fato. Ele tinha horror a qualquer tipo de obediência e eu havia perdido um bocado da minha antiga paciência.
Era daqueles adolescentes que adoram zoar dentro da sala, amam infernizar a vida dos adultos, veneram mostrar aos mais velhos que o tempo deles “já era”. Nada parecia interessá-lo, exceto suas infernais bolinhas de papel, jogadas nos colegas quando eu estava de costas. Passei parte do ano tentando achar seus focos de interesse. Quase nada encontrei. Desisti.
Quando chegamos ao final do ano, ele era obviamente, um dos alunos que ficaria para a prova final. Avisei a turma que minha prova seria uma redação sobre os direitos humanos, visto que no dia 13 de dezembro daquele ano seria o niver de trinta anos do famigerado AI-5. Expliquei o que era o tal Ato Institucional n.º 5 — instrumento utilizado pelos militares para aumentar os poderes do presidente e permitir a repressão e a perseguição das oposições, criado em 13 de dezembro de 1968, no auge da ditadura militar de nosso país.
Conversamos sobre as barbáries cometidas pelos militares durante a revolução de 1964 e nos anos seguintes a ela. Jovens estudantes presos, surrados, idealistas mortos, a população impedida de expor opiniões, jornais fechados, torturas infindas, montes e montes de desaparecidos e de exilados.
Uma verdadeira afronta aos direitos humanos, com a desculpa de que era para o bem do povo e felicidade geral da nação.
Foi a primeira vez que vi um interesse enorme em Lucas. Virou outra pessoa. Olhos e ouvidos aguçados.
Subitamente começou a perguntar sem parar, se os militares ameaçavam a população do nada, se humilhavam as pessoas só por prazer, se obrigavam os presos a tomarem banho frio por economia, a comerem sopa de entulho, se proibiam o uso da TV, se impediam que se ouvisse música alta, se puniam namoros, se aconteciam surras sem motivos, humilhações na frente dos outros, enfim todas as espécies de afrontas possíveis.
Contei que era mais ou menos assim. Quem se mostrasse desobediente ao regime pagava caro. Autoritarismo total.
Perguntou-me, então, quando e como acabou este inferno. Respondi que acabou parcialmente com a extinção da ditadura militar. Mudança de poder. Que ainda existia, mas bem mais disfarçado. As injustiças e sede de poder nunca acabam. Apenas trocam de lados.
Sufocado gritou:
— Quem passou por isso e viveu é o tal anistiado?
Respondi que sim.
— Então, quando eu tiver dinheiro e sair de casa, serei um anistiado. Olha o roxo em minhas costas, e pergunte aos meus colegas quantas vezes viram os berros humilhantes que levei na porta do colégio por causa de um refrigerante. Sou filho de um ditador. Mas discordo de “poder” trocar de lado. Quando tiver um filho, ficarei sempre do mesmo lado, ao lado dele.
Não consegui olhar nos olhos de Lucas. Senti vergonha de fazer parte desta humanidade. Senti raiva de mim, por não ter sacado a vida daquele menino.
Apenas lembrei-me de Andrés Dominguez...
“Os direitos humanos deveriam começar em casa.”
Jurei jogar fora o bife de fígado que minha filha odiava comer.
2004
LIVRO PreTextos/rosapena
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