O REI ESTÁ NU!

Os donos do poder alimentam suas vaidades, vestem as roupas da hipocrisia e desfilam as falsas transparências nas notícias manipuladas. Com os passos ensaiados, ostentam o poderio sob os céus comprometidos. As falas decoradas são repetidas sem compreensão, a ideologia está trajada em bordões de fácil memorização.

O séqüito real se enaltece com a proximidade das autoridades, diverte-se com as performances dos empobrecidos bobos da corte...

Nas fotos de dor e desespero, os personagens vestem roupas encardidas, perdidas entre a carne e a ficção. Os olhos desesperados, o silêncio de um grito sem legendas, a mulher, a criança... Fragmentos de vestimentas verdadeiras que já não protegem. Retratos da real indiferença, retratos da morte pulsando na angústia de permanecer, da vida iluminada por faíscas de esperança...

Os sentenciados de facções rivais se organizam e iniciam a rebelião. Estão condenados ao conflito. Muitos reféns são despidos da liberdade e ficam expostos à violência de uma casa de segurança. Os presos se armam do medo, os agentes penitenciários são prisioneiros da falta de condições de trabalho, os parentes se amparam na fé ou se desesperam na solidão de um ato aflito...

Chamam o “negociador” para domar o rebanho possuído pelo demônio. O pastor abre as portas do céu, declara falar a língua dos anjos, glorifica Jesus e o Espírito Santo e consegue convencer os presos a terminarem a rebelião. Durante todo o percurso de seu desfile, não viu corpos, apesar de existirem vários mortos há muitas horas.

A força do seu olhar divino só percebe os corpos que caem “com armas e tudo” diante dos seus dons espirituais. A percepção se vela, não está desnuda aos corpos aniquilados pelas misérias humanas. A palavra de Deus assume o significado da perspectiva de um novo olhar.

O religioso ganha destaque. O homem desceu do céu no helicóptero enviado pelas autoridades. Suas pregações nos morros cariocas e suas ligações com parentes de traficantes, investigadas pela Polícia, são notícias. Como interpreta-las? “Ao pé da letra”? Ou decifrando as entrelinhas, os hiatos...?

As novas vestes do rei... Fatos novos se sobrepõem a tragédia. Todos os óbitos, pedaços de corpos fragmentados, são trapos inservíveis... Os soberanos ganham novas perspectivas e escondem a responsabilidade na perversão dos facínoras, na possessão do demônio... Inquéritos que se perderão nos calabouços, na culpa dos sobreviventes, na perversão dos mortos, no desamparo dos desvalidos...

As fotografias, publicadas na Folha de São Paulo de 2 de junho, narram a dor dos parentes que assistem à tragédia com o coração disparado, o desamparo dos que são mutilados pelos silêncios... Os números que escondem as identificações dos corpos sob as vestimentas oficiais.

O menino amparado pela mulher chora seu desespero. Consigo ler em seus lábios as palavras do conto de fada do escritor dinamarquês, Hans Christian Andersen (1805/1875). Ironicamente, a frase traduz uma lúcida e sombria percepção da realidade:

“O rei está nu!”

O grito se dispersa na multidão. As tantas notícias confundem os personagens do espetáculo. Falsos brilhos são lançados sobre a multidão apática, os grupos rivais perpetuam suas desavenças, a sociedade permanece dividida com as notícias manipuladas, o debate sobre o sistema penitenciário é abortado do roteiro, o séqüito real acompanha o desfile dos soberanos...

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 23/06/2005
Código do texto: T27196