MUITO MODELO PRA POUCO MANEQUIM

     Tem dia que dá vontade de fazer tanta coisa. De viver tudo o que é possível, tudo de que se gosta. Vontade de comer a vida e as pessoas que desejamos numa bocada só! Mas saímos para a vida e o que temos não é tudo o que desejamos. É aquilo que a vida nos dá. E quando temos sorte (ou mesmo mérito), aquilo que obtemos na vida é apenas parte daquele tudo que desejamos. Às vezes uma parte grande, às vezes uma ínfima fração, mas nunca tudo.
     Outras vezes conseguimos obter algo e vemos que não era nada do que esperávamos. E diante desse pouquinho de vida nas mãos, olhamos para ele com a mesma energia com a qual devoraríamos o mundo, com a força de todos os nossos desejos juntos, sem perceber que estamos diante de apenas um ou de alguns desejos satisfeitos ou daquilo que não é o que pensávamos ser. E assim nos tornamos produtores de frustrações. E assim perdemos coisas e pessoas especiais. E assim não convivemos com as coisas e com as pessoas como elas realmente são. A energia do “tudo que quero” não encontra vazão no “tudo que tenho”. E às vezes a energia é tanta que até parece que estamos sentados numa ogiva nuclear em altíssima velocidade na direção do objeto de nosso desejo. E quando o atingimos: BUM! É radiação pra tudo quanto é lado... Até para quem não tem nada a ver com a história.
     Tudo isso sem a maldade de Hiroshima. Fazemos isso sem querer. Não pelo prazer de destruir, mas pela natural dificuldade de viver. Por causa de certos tipos de felicidade estereotipada que introjetamos e que nos fazem “procurar” coisas que na verdade não deviam ser caçadas; deviam “simplesmente acontecer”. Acreditamos que é necessário, que é bonito correr atrás das pessoas ao invés de deixar que as relações aconteçam. E, o que é pior, temos a desastrosa convicção de que uma atividade prazerosa pode nos salvar de todas as outras tantas atividades desagradáveis que vivenciamos. Tudo isso, na maioria das vezes, inconscientemente. E aí até o prazer vira perturbação. É muita sede!
     Somos ingênuos na vida... Todos! Perdemo-nos no meio de tantas informações. Tantas ofertas... Antigamente ofereciam-nos coisas; agora nos oferecem momentos! É! M O M E N T O S ! Com todas as coisas e pessoas que os compõem, verdadeiros “pacotes”. Pacotes de vida vendida. Pacotes de personalidades. Pacotes de virtudes. E, detalhe, para tudo existe um modelo.
     A vontade de ser feliz, que antigamente formava culturas, por ser livre e criativa, foi dando origem a pessoas felizes, mas ocorreu que por certo predomínio de modelo econômico, acredito eu, modelos de felicidade padronizaram os desejos das pessoas. E as escolhas são poucas. E tem muita gente querendo a mesma coisa. O(a) parceiro(a) ideal não passa de um “pacote de qualidades-modelo”. O lugar ideal também. O trabalho ideal também. Tudo... É muito modelo pra pouco manequim! E as culturas congelaram sob certos padrões. E a vontade de ser feliz não transforma mais, nem cria; simplesmente copia. Nossas vidas são cheias de informações, mas nem sempre nossas informações são cheias de vida. E na ânsia, na luta desenfreada e desmedida por felicidade, encontramos as pessoas e as coisas com muita especulação e perdemos a realidade dos momentos. Por causa de nossos desejos desprezamos nossas constatações. Vemos a vida como um comercial de TV. Acreditamos mais nos momentos que devemos extrair da vida, do que na vida que podemos extrair dos momentos.
     E a vida passa... Como um trem de momentos!
     Talvez nos falte simplicidade, humildade... Sei lá! Sei que não devemos esperar que a felicidade caia do céu e que devemos a cada dia lutar por ela, mas ela qual? A do comercial da TV? A do(a) parceiro(a) ideal? A do máximo de dinheiro possível? A da pura entrega às paixões? A das orgias infindáveis? A dos beijos de novela? Não sei.
     Não é difícil perceber que nada disso tapa o buraco enorme que fica no meio do peito doído, cansado, apertado. Quanto de sofrimento será preciso para notarmos que a fábrica de ficções produz demais? Não somos consumidores de ficções; seres humanos é que somos. Talvez o nosso desejo mais simples seja o mais intenso e não damos atenção para tal “intensidade do desejo” por causa da “quantidade de modelos”.
     Antes que pensem que eu não quero ser feliz, caros leitores, advirto que eu concordo com todos vocês: é necessário lutar para ser feliz de verdade. Mas penso também que é necessário ser feliz de verdade para lutar! E nenhuma luta infeliz tem por resultado uma vitória digna; ao passo que uma luta feliz pode até ter como resultado uma derrota, mas só a felicidade da luta já confere a tudo um caráter de vitória. De vitória da sobriedade, da honestidade, da lucidez e da escolha própria.