NOSSA TRISTEZA: NOSSA VERGONHA - Para os irmãos flagelados no Rio de Janeiro

Dia e noite a doer pela tua dor, Amigo meu, a doer pela minha, pela nossa dor. Dor sobre dor, as imagens dos corpos sepultados sob as próprias casas, nas serras do Rio. Dor sobre dor, o menino pequeno com sua frase: “Parece que o mundo está acabando.”

Não há palavra em mim que possa dizer da dor de viver obrigada a sentir-te e a saber-te a doer assim, Amigo meu, a doer à distância, assim à distância de nós dois, assim, em planetas um do outro há anos-luz. E, junto, segue por mim adentro a imagem do pai que perdeu a casa, dissolvida em areia e lama, e junto com ela, a mulher, os filhos, amigos... a imagem do pai a olhar sem ver, e a dizer: “Foi a vontade de Deus.”

Eu, seguindo assim, sem o direito de poder te dar, por meio nenhum, o testemunho da minha permanência junto de ti, o testemunho desta partilha de dor. E eu gostaria de poder abraçar, doar algo de mim à mulher que pranteia a morte da filha, do neto, do bisneto, todos perdidos em um segundo e de uma única vez.

Das casas dissolvidas alguns se erguem milagrosamente vivos e quase todos, apenas com a roupa do corpo; alguns se mostram felizes por não terem perdido, no Dilúvio, nenhum ser amado. E as lágrimas nos comem, a mim e a ti, e nos transformam os sonhos em lama e areia. Não nos conseguimos erguer diante dos próprios olhos, caídos por terra pela nossa própria Tristeza, caídos por terra pela nossa própria Vergonha. E as pessoas gemem entre os entulhos do que foi sua vida e, entre gemidos, erguem os olhos para dizer:” Vamos começar tudo de novo.”

Há duas dores gritando dentro de nós, como se fora uma só, mas, estou aqui no conforto da casa imune ao Dilúvio, assim também como tu. Não temos culpa disso, nem nos cabe tal Vergonha por esta imunidade que o Destino nos tem outorgado até aqui. Não nos cabe sentir tal Vergonha pela nossa dor, como se ela não fosse legítima como o são essas outras dores a sangrar pelos poros dos nossos irmãos.

A mulher que não perdeu a própria casa, a transforma em centro comunitário e reparte pão, água, roupas, carinho com os que perderam tudo. Eu choro, por um respeito infinito. Não podemos repartir, um com o outro, o pouco de esperança e de alegria que restou de nós, em algum lugar de nós. Não o podemos, Amigo meu, nem nos restou qualquer direito de partilhar as nossas lágrimas de solidão e desta infinita fragilidade, fragilidade espantosa contra a qual jamais soubemos lutar, fragilidade que sempre nos venceu, que sempre nos levou a depor, sem usá-las, as armas de mútuo resgate de que poderíamos dispor. Então, que junto com a incomensurável dor de dupla face, nos percorra um sentimento também de piedade, de divina com-paixão, para que nos consigamos sentir ainda ao menos um pouco felizes, para que nos possamos ainda sentir com algum direito de, efetivamente, comungar com aqueles que, entre escombros, erguem os olhos e, a despeito de restarem apenas com a roupa do corpo, agradecem pela própria vida e pela sobrevivência, neste mundo, de cada um dos seus seres bem-amados.

No final da noite de 14 de janeiro de 2011, na Capital de São Paulo.