Coração Fla-Flu

Coração Fla-Flu

Amanheci com uma súbita saudade do nosso imortal cronista e notável dramaturgo Nelson Rodrigues. As suas crônicas esportivas eram simplesmente deliciosas e vou logo pedindo licença aos meus amigos leitores para transcrever uma dessas crônicas, de 1966, com o intuito de esclarecer, ao final, para o meu amigo Roberto Rego qual o meu time do coração e, como bônus, oferecer um instante de nostalgia gostosa,esperando que as queridas leitoras não vejam um suposto "machismo" na crônica, mas sim uma gozação artística do grande escritor.

Mas vamos logo ao mais importante, a crônica do Nelson. O título era “Vai lavar um tanque!” Com aquele jeito genial de escrever, ele começa: “ Amigos, trasanteontem vi, em Copacabana, uma cena linda. Vinha eu num ônibus apinhado. Gente até no lustre. E, de repente, acontece o seguinte:- um automóvel corta o ônibus, violentamente. O nosso motorista teve de fazer malabarismos, contorcionismos incríveis, para não trepar na calçada, decepar postes, o diabo. Não sei como não mergulhamos numa catástrofe definitiva e total.

Quem dirigia o carro que nos atropelava era uma grã-fina, vejam vocês, uma grã-fina. E o que houve em seguida, foi sublime. O nosso chofer teve uma dessas iras que levam à Revolução Francesa. Quase saiu por aí derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas. E o pior vocês não sabem:- o pior é que a grã-fina não desconfiou de nada. Pouco adiante, o sinal fechou e ela teve que parar. Mas estava feliz da vida e inconsciente da quase-catástrofe.

O ônibus veio atrás e ventando fogo por todas as narinas. Encosta no carrinho da moça. E, então, o chofer enfia a cabeça e berra apenas isto:- “Vai lavar um tanque! Vai lavar um tanque!”. Foi só. Mas ao chamá-la de lavadeira, com todas as letras, o motorista fora o nosso intérprete veemente e fiel. Dir-se-ia que o insulto reparava, em todos os passageiros, não sei que velhas e santas humilhações.

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Contei a fábula e vamos a sua moral. Eu também teria uma vontade quase incoercível de sugerir a Simone de Beauvoir:- “Ora, vai lavar um tanque, vai lavar um tanque!”.

Trata-se realmente de uma das maiores escritoras do mundo. Tudo o que ela escreve tem um fulminante editor. De vez em quando, faço a pergunta, sem lhe achar a resposta:- por quê, meu Deus, por quê?

Há duas explicações para o seu êxito literário:- primeiro, é namorada de Jean-Paul Sartre; segundo, é uma burrice servida pela prosa francesa. Na França, até um cavalo há de relinchar com superior qualidade estilística. E, com boa redação, é fácil simular inteligência e a bobagem mais deslavada fica profunda. Mas se esmiuçarmos bem os seus escritos, verificaremos esta verdade súbita e santa:- ela sente, pensa e conclui como uma doce lavadeira.

Dito isto, passo a uma outra ordem de considerações. No futebol, também há os que são de fato inteligentes, e os que apenas fingem inteligência. Daí certos resultados misteriosíssimos. E o que os explica, ou é a boa, límpida, inequívoca inteligência ou, inversamente, a burrice inconfessa ou proclamada. Quero argumentar com o meu time, o Fluminense.

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Mas não há mistério. O sucesso tricolor é, se assim posso dizer, uma conquista da inteligência. O pó-de-arroz é o time mais inteligente da cidade. Os outros jogam noventa minutos com os mesmíssimos e imutáveis defeitos. O Fluminense, não. Com uma inteligentíssima flexibilidade, ele muda de jogo, se for o caso, de quinze em quinze minutos. No segundo tempo o quadro parece outro. Por quê? Porque o tricolor é, no momento, talvez a única equipe carioca que pensa, que imagina e que, num mesmo jogo, altera e reajusta todo o seu comportamento tático.

E porque pensa, e pensa bem, o Fluminense há de vencer o campeonato carioca, como venceu a Taça Guanabara”.

Esse final do Nelson caberia bem nos dias de hoje, com essa pequena alteração:- E porque pensa, e pensa bem, o Fluminense há de vencer o campeonato carioca, como venceu o Campeonato Brasileiro de 2010.

Pois bem, amigos, para finalizar, andei escrevendo no começo do ano passado que joguei tênis de mesa pelo Fluminense (imposição “sutil” do meu pai, tricolor doente, assim como toda minha família) Mas no futebol sempre fui Flamengo. Cheguei a visitar a sede do Flamengo, na época de jovem, na Praia do Flamengo, mas a pobreza do Clube era tão grande que voltei correndo para os braços do Fluminense. Esta história, narrada na crônica “Confissão Desagradável”, provocou uma certa confusão no meu amigo mineiro Roberto, ao me imaginar um tricolor.

Quero, no entanto, prestar minha homenagem à bela intuição do Roberto, pois, ao refletir sobre esse meu dilema de infância, acabei constatando, usando a inteligência, como queria o grande Nelson Rodrigues, que, na verdade, meu coração é Fla-Flu.