Brinquinho de letra
A jornalista do setor de comunicação da empresa tenta publicar uma matéria no site, mas não consegue. Em todas as tentativas recebe retorno de erro. Ela confere o texto, a foto, tenta de novo. Não vai. A notícia já está ficando velha e ela entra em contato com o suporte:
- Não estou conseguindo postar uma notícia no site. Achei que era a foto, mas mesmo sem a foto não é possível.
- Ok. Vou verificar o problema e já dou um retorno.
Cinco minutos depois o funcionário do suporte telefona:
- Me diz uma coisa...
- Sim?
- Tem algum apóstrofo no texto?
- Hã?!
- Apóstrofo. Tem algum no seu texto?
- Tem sim, no título, por quê?
- Não pode. O sistema não aceita. Por isso o erro. Você deve tirar o apóstrofo, senão a matéria não entra.
Longe de se irritar, pois teria de tirar o apóstrofo do título da matéria - e fazer título não é algo simples assim -, a jornalista caiu na gargalhada. Como é que um sinalzinho, em princípio tão insignificante, um brinquinho na orelha da letra, poderia causar estrago tão grande? “É, mas não pode”, disse o rapaz do suporte. “É pequenininho, quase imperceptível, mas o sistema não o aceita”.
O apóstrofo é mais usado na língua inglesa, como indicativo de possessão. Já no Português é raramente visto, mas mesmo assim ainda ganhou tópico especial no Novo Acordo Ortográfico. Sua aplicação se dá em quatro situações:
a) Para fazer a cisão gráfica de uma contração ou aglutinação, a exemplo de: Ontem assisti pela centésima vez à exibição d’O Vento Levou;
b) Para cindir uma aglutinação ou contração do artigo com o pronome pessoal que se quer realçar. Ex: Acreditamos n’Ele;
c) Nas ligações das formas santo e santa quando há elisão das vogais finais a e o. Ex: Flor de Sant’Ana;
d) Para assinalar a elisão do e, e da preposição de combinada com substativos: “A estrela-d’alva no céu desponta e a lua anda tonta com tamanho esplendor”.
Porém, no uso corriqueiro da Língua, raríssimos são os operários do texto que se lembram do sinalzinho gráfico, cada vez menos visto. A jornalista queria usá-lo na contração “colunista d’O Globo”, mas foi obrigada a mudar o título para que sua matéria fosse pro ar.
A parte hilária de tudo isso, que levou minha colega às gargalhadas, foi a fragilidade de um sistema em não aceitar um sinalzinho quase imperceptível. O que haverá no apóstrofo de tão incômodo que empaca o sistema? Quando ouvi esta história me lembrei de um cisco no olho, que numa noite de sábado me levou a um pronto socorro e de lá, direto para casa, com um baita curativo. Um cisco. Invisível. E fez um estrago daqueles.
Por outro lado, há os que confundem Português com Inglês e saem jogando apóstrofo pra todo lado, principalmente em nomes de estabelecimentos comerciais do tipo botequim: bar do Joelson’s, cantina Morena’s, lanchonete Petisco’s. Pior que isso é ver gente letrada escrever CD’s e DVD’s. Chega a dar arrepios. Neste caso, melhor mesmo é que o sistema bloqueie o injustiçado apóstrofo.