O que você vai ser quando chover?

Coçou a testa, ali, bem acima da sobrancelha esquerda. É a mais bonita, a mais bem feita. Coçou de novo. Ajeitou os óculos, se remexeu pra lá, se remexeu pra cá... Depois de estralar os dedos, arreganhou as pernas e passou os pés por trás dos pés dianteiros da cadeira. Meio encurvada, olhava para a tela do computador. Tinha passado o dia escrevendo e mais de quinze mil caracteres encheram sete páginas com margens superiores e inferiores, quantidade de caracteres, fonte, título centralizado em negrito, tipo e tamanho de letra pré-definidos. Há tempos que não conseguia escrever nada e nada inteligente sairia dela, claro. Ficava pensando em como as pessoas arranjam idéias para escrever coisas que as façam parecer inteligentes. Nem queria pensar.

Estava mais quente do que poderia suportar e mais silêncio do que poderia querer. Era isso. Só podia ser. Tinha mesmo de discernir? Tinha não. Ficou um calombo onde coçou acima da sobrancelha. Hein? O que é calombo? Ah, é a mesma coisa que babinha.

Lembrou do texto do Monteiro Lobato “E era onça mesmo”. A coragem patética do Pedrinho a deixava enjoada e a insuportabilidade da Emília era puro luxo. Deve ser daí que saiu sua acidez. Passava o dia inteiro assistindo “Sítio do Pica-pau Amarelo”. Hoje pensa que Visconde de Sabugosa é gay e tem um caso com o marquês de Rabicó e que casaram ele com Emília só para encobrir os fatos. Da mesma forma que Mickey e Pateta são caso. Agora pronto, veio uma enxurrada de desenhos animados, todos questionáveis com suas mensagens subliminares.

Tantas perguntas rondam sua mente vazia... O que mais pode querer da vida? Pode escrever o que quiser. As frases não são incoerentes, assim como as idéias também não. E daí se ela rima alho com bugalho e é tão previsível quanto a rima que usou?

É doida! Ontem decidiu acabar definitivamente com a farsa de tantos anos, dizendo para alguém que a fez sofrer demais que sabia de tudo. Sempre soube, na verdade. A pessoa negou que tivesse falado as coisas que afirmou. E vem ao caso? Alguma coisa veio até agora? O importante é que sabia o tempo todo e tinha certeza do que estava falando.

É um emaranhado de coisa presa, de palavra solta, perdida na cabeça... Nem sabe como colocar tudo em ordem, pois é caos o que pensa agora. Melhor soltar tudo, abrir a comporta do coração, deixar jorrar tudo e tirar a taramela da língua. O que é taramela? É a mesma coisa que tramela, uai! Aconselha que leiam “O caso enrolado do menino calado”, de Jonas Ribeiro e saberão do que ela tanto fala, do que tanto deseja. E olha que ela nem é de ficar matutando pelos cantos. Faz tudo o que quer, na hora que bem entende.

Mas até agora ela só falou de coisa de criança! - Vocês hão de pensar – Acontece que desde o tempo de criança que não se perguntava: o que você vai ser quando crescer? Como ela não tem como crescer mais, preferiu pensar no que ser quando chover.

Calor dos diabos! - Pensou – Quando chover eu quero voltar a ser gente.

Fabíola Colares

Fabíola Colares
Enviado por Fabíola Colares em 20/01/2011
Código do texto: T2739880
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