MEMORIA DE UM BEM REAL

Não se sabe ao certo, nem ao errado em verdade, como recebera o amor que lha foi dado durante a infância, sabe-se, porém, de sua exorbitante auto-estima que omite - se às vezes dentre as costuras de sua profunda quietude. Não - vontade de se abrir com algumas pessoas. Hoje diz não ter tido infância. E o que seria “a” infância afinal que diz não conhecer? “Aquela fase onde não se tem a menor preocupação, a menor”,responde. Não teve. Sempre tinha uma preocupação - a menor.

Uma vez falaram a palavra “segunda-feira” perto dela muito jovem ainda, uns três anos. Matutou por toda a tarde o que seria isso. “Será talvez a segunda vez que fizeram a feira aqui em casa?” .Estranhou ver alguém perguntando qual era aquele dia, e mais ainda quando ouviu que havia resposta certa para tal questão.

Aos quatro sua mãe vestira ela e o irmão mais moço de palhaços para fotografarem num parque. As pessoas que viam bradavam sorridentes:“olha os palhacinhos” .Mas ela já não conseguia deixar de se importar, tampouco se envaidecer com a condição de estar diferente. Não deixou que a mãe lha pintasse a cara, diferente do irmão, que estava ali por três motivos demarcadores de quem teve “a” infância. Havia ganhado um ovo de páscoa caseiro. Ganhara um carrinho de brinquedo.E não sabia porquê estava ali.

Não sabe dizer decerto como lha chegaram muitas das informações que teve acesso, mas sabe bem quando precisou delas e não lembrou. Não saberia citar como lhe ensinaram algo bom que conseguira assimilar de uma vez, mas lembrar de como foi-lhe dito o que não era para ser feito e o porquê, sabe listar em ordem alfabética grega. Ademais, cresceu com a ciência exata de uma coisa: estava avisada, se desse errado azar o dela!

Isso servia para tudo, mas um fato era bem peculiar: chegava da escola e ia ver televisão em seu quarto. Devido ao pouco espaço, a rede ficava muito próxima à tevê, esta sustentada por uma frágil prateleira de madeira assegurada por parafusos. Tudo muito ínfimo. Não tendo onde pegar impulso para seu balanço na rede, fazia-o na prateleira.

Veio o primeiro aviso: “Um dia essa prateleira despenca e a televisão cai e quebra”. Mas isso ainda estava longe de acontecer. A prateleira ainda estava boa, invicta. O tempo passou e os hábitos não mudaram. Nem os dela de pegar impulso, nem os do pai de alertar a quebra. No entanto, ela de vez em quando punha-se a refletir entre um impulsionar e um balançar: notava que seu pai era econômico, não gostava de luxo e evitava compras caras. Sabia que se o contínuo e pertinente aviso fosse acatado, evitaria o gasto com o conserto da prateleira e da compra de uma nova tevê, mas fez-se de desentendida pois o prazer momentâneo de uma balançada na rede parecia valer-lhe mais.

Seguiram-se os dias, os meses, os anos até que a prateleira começara a apresentar indícios de cessão.Não se importou, ou melhor, importou-se e fingira não se importar, afinal nunca tivera infância o suficiente para não se importar. Com o passar dos dias a estante ficava cada vez mais mole até o tempo em que ficara pendurada nos corpos delgados dos parafusos. Já com certa restrição e receio, a menina tomara uma atitude mais responsável: passara a dar impulsos vacilantes.

Depois de um tempo considerável, realmente considerável, de martírios, avisos, o pai examinando o estado da estante, o temor pela queda da televisão, o dia da fatalidade era esperado com resignação pela menina que resolvera não parar de tomar impulsos na estante e tentar se despreocupar mesmo que fosse assim – preocupada mesmo.

Então, numa noite dessas, a tal prateleira na pendenga não caíra: somente a televisão. Pá no chão. O quarto dos pais ficava ao lado. “Ai meu Deus, e agora?” A tevê no chão e o mundo na cabeça da pobre sem infância. “Meu pai me avisou...”, e os passos acelerados da mãe que vestia o hobby. Arrependimento tardio. Quebrara a tevê. “Vou apanhar, apanhar muito! Droga, por que não parei a tempo! Ele vai ter de gastar dinheiro comprando outra tevê” e os pais exaltados atravessaram o hall antes de seu último pensamento. Chegando ao quarto a surpresa. Os pais nem se importaram com a tevê no chão, acudiram a filha nos braços num indagar afoito: “Você está bem?”

Sabiam que a tevê um dia cairia e que teriam prejuízo com isso. Mas o que importava de fato era que não caísse sobre ela. Nem explicaram isso à menina. E nem precisou - se. Antes de deixarem o quarto perguntaram-lhe o motivo de tanto chorar se não suportara sobre ela a queda do aparelho. “Nada não”. E não se sabe de onde nascera sua copiosa auto-estima, nem sua quietude, nem quando discernira o bem do mal pela primeira vez ou quando deixara de ter “a” infância, porém sua memória guarda absoluta o momento donde sentira ter vivido um bem real.

Juliana Santiago
Enviado por Juliana Santiago em 23/01/2011
Código do texto: T2747402
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