O nome faz o homem ou o homem faz o nome? Ou nenhuma coisa nem outra?

Quando o Cunha se referia ao Alencarzinho sempre começava dizendo:

- É o sujeito mais sistemático do mundo!

E era verdade. Bem, pelo menos num aspecto: o Alencarzinho não decidia nada, absolutamente nada, em hipótese alguma, sem antes conhecer a opinião do Cunha. Era assim desde que o Cunha se casara com a irmã do Alencarzinho, já lá se iam bem uns quatro ou cinco anos. Minto, foi antes disso. Foi quando a irmã ficou noiva do Cunha e o Alencarzinho se convenceu que ela ia mesmo casar.

O Cunha tinha seis, sete anos mais do que o Alencarzinho, mas nem que fosse seu pai a sua opinião seria tão valorizada, teria tanto peso. Se Alencarzinho queria comprar um par de sapatos, só o fazia depois de ouvir o Cunha. Encontrava um jeito de arrastar o Cunha para a loja de calçados:

- Você acha que esse modelo combina comigo? Não é esportivo demais? Será que pega fácil a forma do pé? Não vai machucar? E a costura, a qualidade da costura, que é que você acha?

Certa vez arranjou uma namorada, ou por outra, pretendia vir a tê-la como tal, mas nunca sem antes ouvir o Cunha. Fez que fez até que lhe apresentou a moça:

- E aí, Cunha, que é que você achou dela?

Houve outra ocasião em que Alencarzinho cismou de aprender eletricidade; queria por que queria fazer um curso à distância, desses que dão apostila e kit de prática. O Cunha, consultado, pontificou:

- Bobagem, Alencarzinho, bobagem. Para aprender eletricidade, aprender de verdade, o sujeito tem que tomar choque, rapaz. Você já viu alguém tomar choque por correspondência?

Resultado: desistiu. Quando lhe perguntaram o que resolvera sobre o curso a resposta foi curta e definitiva:

- O Cunha não recomendou.

E era assim com qualquer coisa; só bebia as cervejas que o Cunha aprovasse, só lia a revista ou o jornal que obtivesse o ‘nihil obastat’ do Cunha. Venerava ao Cunha mais que ao Papa.

O Cunha, por sua vez, era a personificação da tolerância ou por outra, como dizia o próprio Alencarzinho, tinha uma paciência de Jó.

Jó, como nos conta o Velho Testamento e todos estão cansados de saber, foi o protagonista de uma aposta feita entre Deus e o Diabo. Aposta essa que consistiu em submeter o infeliz às maiores provações, fazendo-o perder a riqueza, os filhos, a saúde, tudo enfim, para ver se ele continuava fiel à sua fé. No fim o Diabo perdeu a aposta; Jó continuou esperando em Deus e foi, finalmente, recompensado. E virou símbolo de perseverança, de paciência. Feita esta pequena digressão, voltemos ao Cunha.

Para vocês terem uma idéia, uma pálida idéia, da paciência do Cunha, basta dizer-lhes isto: o Cunha nunca foi Cunha na vida. Seu sobrenome de família era Rodrigues. Acontece que desde que iniciou o namoro com a irmã do Alencarzinho, este começou a tratá-lo como cunhado. Cunhado, convenhamos, é uma palavra bem comprida; dois dias depois virou Cunha e Cunha ficou sem que em momento algum o homem se rebelasse contra a alcunha – desculpem-me a inconveniência do trocadilho.

Os amigos de longa data que sempre souberam-no Rodrigues – Augusto Rodrigues era o seu nome – estranhavam vê-lo sendo tratado por Cunha, mas enfim... Vai ver que é um apelido, condescendiam.

Preciso dizer-lhes que para Eunice, irmã do Alencarzinho e esposa do Cunha, o Cunha nunca foi Cunha, claro; era o Gugu desde que se conheceram. Mas a verdade é que todo mundo na família – tios, primos, sobrinhos, genros e noras – todos foram, pouco a pouco, adotando preferencialmente o tratamento de Cunha; só Eunice resistia a chamá-lo assim.

Bem, não era só Eunice, não; padre Bento também. Aliás, tenho de lhes contar isto: faltando uma semana para o casamento, padre Bento que era amigo da família desde tempos imemoriais – tinha casado Cotinha e Zizo e lhes batizado os filhos – foi visitar Eunice para tratar de detalhes da cerimônia, enfeites da igreja, essas coisas. Foi aí que descobriu que o Cunha era Rodrigues; que Cunha não passava de uma corruptela de cunhado.

Foi um Deus nos acuda. Do alto da sua autoridade eclesiástica padre Bento soltou os cachorros no Alencarzinho, despejou-lhe um sermão daqueles:

- Então onde é que já se viu pecar contra o sacramento do batismo mudando o nome do cristão? Isto só pode ser coisa do capeta, e repetia, destacando as sílabas: Ca - pe - ta.

Outra exceção era dona Cotinha, mãe de Eunice e que sempre o tratara respeitosamente e num tom quase solene: Senhor Augusto. Total: três escassas exceções.

Muito bem! Tudo aconteceu como lhes disse, e foi assim que o Cunha que não era Cunha, na verdade era Rodrigues, pessoa de bem, entrou para a família Andrade com nome suposto, como se fosse um bandido.

Anos depois, os filhos já crescidos, Rodrigues era apenas um sobrenome que ficara enterrado num passado longínquo. Mesmo dentre os mais chegados, poucos sabiam seu primeiro nome: Augusto. Mas não havia quem não conhecesse o Cunha.

luca barbabianca
Enviado por luca barbabianca em 24/01/2011
Código do texto: T2748972
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