CASAMENTO NA ROÇA ERA ASSIM...

CASAMENTO NA ROÇA


Os cochichos já circulavam na fazenda Bahia: O Zé Luquinha foi visto “ de bonde” (andar um ao lado do outro) com a Eugênia. Rapidinho a notícia se espalhou e nos domingos seguintes o Luquinha não perdia nenhuma missa. Já vinham juntos para casa, acompanhados de longe pela sogra D.Corina, (mãe de Eugênia). Sozinhos, nem pensar, pois o Sô Jozino jamais admitiria que sua filha andasse sozinha com o namorado.

O namoro foi se firmando e, no mês de dezembro, o Zé Luquinha iria pedir a Eugênia em casamento, pois já se passaram uns oito meses desde o início do namoro. Para tanto, pediu ao seu patrão Zé Carneiro que se encarregasse de fazer o pedido junto ao Jozino.

A tarefa, pensou o Luquinha, seria facilitada porque os dois eram muito amigos e estavam sempre juntos, pois era o Jozino que fazia o serviço de carpinteiro no engenho de rapadura do Zé Carneiro. O engenho era puxado por uma junta de bois e era todo de madeira, com exceção das moendas que eram de ferro. Enquanto o Zé Carneiro aguardava uma oportunidade para fazer o pedido do casamento, o Luquinha arriscava escrever algumas ”linhas” para a namorada. Tudo isso com a supervisão do Zé de Jovita, que acrescentou na carta uma quadrinha:

Eugênia, vamos jogar

O jogo da douradinha

Se você ganhar, eu sou seu

Se eu ganhar você é minha.



O Zé Carneiro, em uma tarde de sábado do mês de maio daquele ano de 1950, foi visitar o seu amigo Jozino e, ao mesmo tempo, cumprir a tarefa solicitada pelo Zé Luquinha. Chegou quase ao anoitecer e, após longo papo, já noite, como era de costume, Jozino foi “coar” o café. A sua cozinha era de terra batida e, na época do frio, ele acendia uma pequena fogueira no chão da mesma. Quando o fogo estava bem aceso, ele puxava um arame que estava amarrado no teto e nele prendia a chaleira que iria ferver a água para o café. Era só colocar a rapadura, esperar a água ferver, colocar o pó no coador que estava preso ao mancebo (suporte onde se prendia o coador), coar o café e colocá-lo no bule esmaltado. O café era servido em copinhos também esmaltados.

Estavam os dois saboreando o café quando o Zé carneiro tocou no assunto: - Sô Jozino, como o senhor sabe, o Zé Luquinha namora a Eugênia sua filha e está com intenção de casar com ela. Tanto é que encarregou-me de fazer ao senhor o pedido de sua filha em casamento. O Jozino que havia acendido um cigarro, deu uma baforada e disse:-Será que ele aguenta comprar o toucinho? Ao que o Carneiro retrucou: - ele é trabalhador, meu carreiro de confiança e tenho a intenção de, tão logo ele case, construir uma casa para ele lá na Cachoeira do Jurumirim, pois tenho um moinho lá e preciso de alguém para administrá-lo para mim. - Tá bão, disse o Jozino, e complementou: essa menina vai fazer muita falta aqui em casa pois é ela quem lava , passa e cozinha. Mas, enfim, é a vida e nós não podemos segurar os filhos para sempre. O Jozino chamou a sua esposa Corina, a filha Eugênia e disse para elas o motivo da visita do Zé Carneiro. Todos ficaram alegres e o Zé Carneiro, após conversar mais um pouco, disse que ia para casa, pois já estava ficando tarde e a sua esposa Cici estava só com as empregadas e os filhos ainda pequenos. Despediu-se de todos e saiu.

Tão logo o Zé Carneiro atingiu a estrada que ia para a fazenda já encontrou o Luquinha querendo saber o resultado do pedido. Quando soube ficou muito alegre, despediu-se do amigo e foi para a sua casa contar a novidade.

No domingo seguinte, após terem ido à missa, em Calambau, o noivo já foi até a casa da noiva tomar o café. Os sogros o recebeu muito bem, oferecendo um café com leite de cabra, broa, biscoito frito e farinha de amendoim. Combinaram a data do casamento. Seria no dia 15 de julho, pois a noiva queria que fosse no dia 16 de julho, dia de N.S. do Carmo. Como esse dia cairia num domingo e o Pe. Grossi só realizava casamentos aos sábados, tiveram que escolher o dia 15. Na venda do Zé Fernandes compraram duas lindas memórias (alianças) que foram colocadas nos respectivos dedos da mão direita.

A partir daí, tudo girava em torno do casamento. O Sr.Jozino “chegou mais fubá” nos quatro capadinhos que já estavam de “meia engorda”. Os frangos tiveram aumentada a cota do milho, o mesmo acontecendo com os patos e cabritos. O Zé Lucas, pai do Luquinha, também tomava as suas providências pois teria que promover o almoço para os “acompanhantes” dos noivos no dia do casamento. O Zé Carneiro que seria o padrinho do noivo já preparava o arreamento do cavalo que transportaria o noivo. Como o arreio estava muito bom foi preciso apenas comprar uma barrigueira e um peitoral . O cavalo escolhido foi o “Segredo”, preto com uma estrela na testa e muito bom marchador.

O mês de junho estava por terminar e os noivos já providenciaram os “papéis” na Igreja. Levaram a certidão de nascimento para a secretária da paróquia e ela preencheu o formulário próprio para o casamento. O casamento teria que ser pregoado por três domingos. No domingo seguinte, os noivos estavam na Igreja assistindo, ansiosos, à missa das dez. No final da mesma, o Pe.Grossi iria pregoar os casamentos. Nesse domingo eram três. O dos nossos noivos foi o último. Com ar solene, assim disse o Pe.Grossi:” Por favor de Deus e da Santa Madre Igreja querem se casar José Sabino Lucas e Eugênia Correia; ele, com vinte e cinco anos, nascido e batizado nesta paróquia, filho de José Lucas e Maria Correia Lucas. Ela, com vinte e dois anos, nascida e batizada nesta paróquia, filha de Jozino Correia e Corina de Jesus Correia. Irão se casar nesta paróquia de Santo Antônio de Calambau. Terminando ,disse ainda o Padre: Se alguém souber de algum impedimento que torne esse casamento nulo ou ilícito, sob pena de pecado mortal, é obrigado a denunciar e à mesma pena incorre quem der denúncia falsa.” Os noivos não cabiam em si de contentamento. Agora toda a comunidade estava ciente de seu casamento.

O noivo já havia comprado o brim para o terno que seria feito pela Júlia ,esposa de Vicente Faria. O vestido da noiva seria feito pela melhor costureira de Calambau, a Maria de Bela, que iria também fazer o balancinho (porta-alianças) para colocar as memórias (alianças) e a grinalda da noiva.

No início de julho, outras providências foram tomadas: o Benvindo Catarina, Claudino e Colatino Ribeiro ficariam encarregados de fazer as tarimbas de bambus que serviriam de mesas bem como os bancos, também de bambus. Essas tarimbas ficariam no terreiro onde seria servido o jantar , na casa da noiva. O Zé Lucas (pai do noivo), Antônio Crispim e Chico Lucas ficariam encarregados de matar os porcos, cabritos, frangos e patos. As cozinheiras seriam as senhoras: Corina (mãe da noiva),Tereza Praia, Ernestina e Tereza Ambrósio. Os doces ficariam a cargo de Dona Olira, Maria Canuta e Maria Tomé. Os arcos de bambus que enfeitariam a chegada do terreiro ficariam a cargo do Zé Bananal, e, também, o arco na cabeceira da mesa onde os noivos jantariam. O Ulisses, irmão da noiva, ficou encarregado dos foguetes que seriam soltos na chegada dos noivos. Uma figura importante nessa ocasião é o carregador de malas. O escolhido da noiva foi o Zé Lourenço.

O noivo escolheu o Raimundo Correia, um bom rapaz mas que gostava de uma pinguinha. Os carregadores saíam antes dos noivos e levavam as suas malas para a cidade, na casa onde eles iriam “trocar de roupa”. Geralmente iam a pé ou a cavalo.

Além dos parentes dos noivos, foram convidados os amigos da região: Quenta-Sol, Cachoeira do Jurumirim, Bico de Pato, Monteiro, Venda-Nova e Santana, além do pessoal da comunidade Baía onde eles moravam.

Estávamos já na véspera do grande dia. Todas as tarefas estavam sendo cumpridas a contento. Os dois garrafões de cachaça, presente do Zé Carneiro, já estavam escondidos no paiol, pois alguns dos convidados iriam tomar uns goles antes da hora, embora o Sô Jozino não concordasse. Nesse dia, também, seriam tomadas as últimas providências: varrer o terreiro, amarrar os cachorros, limpar o chiqueiro, o curral, o galinheiro, etc.

Já estamos na manhã do casamento. Na casa do noivo, todos acordaram cedo, pois o casamento seria à uma hora da tarde. Teriam que almoçar às dez horas, arrear os cavalos e ir para a vila de Calambau. O primeiro a chegar para almoçar foi o Raimundo Correia, pois teria que sair mais cedo com a mala do noivo e entregá-la na casa de Dona Augusta, sogra do padrinho do noivo, onde ele iria trocar de roupa. O cavalo em que a noiva iria montar era um muito manso, arranjado pelo seu padrinho Vicente Faria. Esse cavalo já vinha arreado com o silhão (arreio próprio para mulheres) usado pela Dona Júlia, esposa do Vicente. O almoço tanto na casa do noivo como da noiva seria servido às dez horas, pois às onze horas eles teriam que ir para a “ rua” para a celebração do casamento. O Raimundo Correia almoçou, pegou a mala do noivo e saiu a pé. Depois de uma hora, ele já estava no boteco do Raimundo Caboré , dono de um boteco no início do morro dos Bastos. O Raimundo Correia entrou no boteco e foi logo dizendo: - Sô Raimundo bota um lavrado (copo cheio) de pinga para mim. Já almocei e até agora não bebi nada. Estou levando a mala do noivo Zé Luquinha e, se eles passarem por aqui, o senhor “não dá o cheiro”. Meia hora depois, passam por lá o noivo e seus acompanhantes. Apiaram, tomaram uma pinga e perguntaram ao Sô Raimundo pelo Raimundo Correia. Ele respondeu: - não vi toada dele não... Também já havia passado o Zè Lourenço com a mala da noiva. Quando a turma do noivo estava entrando em Calambau ,viram no Beco, próximo à casa do Sô Ricardo Peixoto, os cavalos dos acompanhantes da noiva, já amarrados nas árvores próximas. Atravessaram o Largo da Matriz, desceram a Rua São José e pararam ao lado da casa da D.Augusta, onde amarraram os seus cavalos na cerca de braúna.

Faltava quase uma hora para o casamento. Na casa de Sô Ricardo, Dona Júlia, madrinha da noiva, ajudava a noiva a vestir o lindo vestido feito pela Maria de Bela. Na casa de Dona Augusta, o Zé Carneiro, padrinho do noivo, já estava dando o nó na sua gravata.

A noiva, ladeada pelos seus pais Jozino e Corina, pelos padrinhos Vicente Faria e Dona Júlia, pelos parentes e convidados, já estava na Igreja. Daí a pouco chegou o noivo ladeado pelos seus pais Zé Lucas e Sá Maria e pelos padrinhos Zé Carneiro e Dona Cici.

Terminada a cerimônia celebrada pelo Pe.Grossi, os noivos na porta da Igreja, após receberem uma “chuva” de arroz, receberam os cumprimentos. Depois de trocarem as roupas, montaram em seus cavalos e, junto com os demais cavaleiros, voltaram para a casa da noiva. Apenas o Zé Carneiro e a Dona Cici foram de charrete.

Às quatro horas, o pessoal já estava chegando no morro do Baía (aqui se fala assim), local em que soltaram uns foguetes para avisar que a turma do casamento estava chegando. O Ulisses, irmão da noiva, que havia ficado para organizar a festa respondeu com outros foguetes. Quando saíram da estrada de Piranga e entraram na estradinha que os levariam à casa do Jozino, os noivos passaram debaixo de um arco de bambu. O mesmo acontecendo na chegada ao terreiro. Tão logo chegaram, os cavalos foram amarrados debaixo dos inúmeros pés de laranja do quintal. E o Raimundo Correia? O carregador de mala...Depois que tomou a pinga no Raimundo Caboré, chegou à rua, entregou a mala na casa da Dona Augusta e invernou na pinga. A mala foi trazida pelo João Arcino. Só muito tempo depois é que o Raimundo chegou à festa.

Às cinco horas, foi servido o jantar. A mesa estava posta no terreiro e era muito grande. Numa ponta ficava o arroz, tutu com linguiça ( aqui a linguiça tinha o apelido de cascavel), pato com macarrão, farofa de miúdos de porco, farofa de miúdos de frango ,cabrito assado, leitoa assada, pata assada trazendo em seu bico o ovo cozido, macarronada, etc. Sobre a mesa tinha, também, um garrafão de cachaça e um copo, para quem apreciava a “branquinha” (aqui na região diziam que por aqui só o sino não bebia, pois tinha a boca virada pra baixo). Para as mulheres, uma bebida mais leve, a “temperada” que era feita de cachaça, água, açúcar, anilina, canela e limão.

Os primeiros a serem servidos foram os noivos. Obedecendo o ritual dessa ocasião, a noiva era servida pelo seu padrinho, o noivo também pelo seu padrinho. A partir daí, liberação geral: as mães servindo os filhos, as mulheres servindo os maridos e assim por diante. No final do jantar foram servidos os doces. O lindo bolo feito pela D.Cici, que tinha em cima um noivo e uma noiva, foi partido pelos noivos. Os pedaços foram distribuídos entre os presentes. A noite já estava chegando, quando junto também chegaram o Rosalino e o Pedro Renovato, dois dos maiores sanfoneiros da região. Chegou também o Sebastião Maurício com a sua caixa para marcar o ritmo das músicas. A zoada foi a noite toda perturbando até o cantar dos galos da região que já anunciavam o amanhecer.

O casamento do Sr.José Sabino Lucas (Zé Luquinha) com a Sra. Eugênia Correia foi o evento mais importante do ano, nas redondezas da fazenda Baía, e deixou saudades!



Murilo Vidigal Carneiro

Janeiro 2011
murilo de calambau
Enviado por murilo de calambau em 31/01/2011
Reeditado em 08/11/2013
Código do texto: T2764120
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