A mortalha do amor

Contrariamente ao que gostava, aumentou o som. Tentou cantarolar, acompanhando a música. Voz veio rouca, palavras truncadas. “Saudade é o pior tormento..pior do que se entrevar”. Talvez tivesse chegado a hora. Abriu o armário; cheiro de mofo, cheiro de lembranças. “Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.

Fazia pouco de quem falasse da sensação de dor real da saudade, de aperto no peito, da garganta fechada. Coisa de poeta romântico, dizia. Até senti-la.

“Oh, pedaço de mim,/Oh metade amputada de mim”. Pôs-se a esvaziar o armário; cada cabide, uma história. Tudo em cima da cama. Mosaico de momentos mil. “É assim como uma fisgada/No membro que já perdi.” Dobrou o que conseguiu, deixando o sopro da memória nas dobraduras das roupas. A maioria escapava. Misto de tristeza e revolta. Quem mandou ter ido.

Ensacou. Primeiro com cuidado, depois, com raiva. Socou, agora sem dobrar. Forçava, caíam pelo lado. “Oh, metade amputada de mim,/leva o que há de ti”. Não tinha ideia do que fazer com aquilo tudo. Só o queria longe. Sabia que o véu da lembrança persistiria. Que o acordaria em meio ao sono e aos sonhos. Que ainda teceria no emaranhado da mente. Que a dor não acompanharia as roupas, para onde que que fossem. Escolhera outa morada: ao seu lado. “Que a saudade dói como um barco/que aos poucos descreve um arco/ e evita atracar no cais”. Quantos infinitos que se afundaram! Talvez, com o tempo, doesse menos. Ou se acostumasse.

Abriu a gaveta do criado mudo. Bilhetes. Contas, recados, pequenas mensagens de presença. Não doeria menos, nem se acostumaria. “Leva o vulto teu/que a saudade é o revés de um parto.” Queimou-os como quem incinera quem dará as cinzas para encorpar o vento.

Agora, sistemático, recolheu todas lembranças da sala. Porta retratos, pequenas recordações de viagens, aquela concha do primeiro dia na praia, as grandes lembranças e as pequenas bobagens. Deixou tudo limpo. Livre das tentações da tristeza.

Saiu, o céu todo azul. Não gostava, algumas nuvens eram sempre bem-vindas. Acendeu um cigarro. A fumaça fazendo as vezes de nuvem. Dissipou-se. “Não quero levar comigo/a mortalha do amor. Adeus”.