Nossas Almas

Meus amigos, devo dizer-lhes que fico um pouco constrangido, em razão de talvez uma má interpretação de alguém, pelo que vou narrar adiante. Esses intérpretes podem nos levar às alturas imerecidas, como também nos fazer descer aos umbrais de um inferno escaldante. Ah! Esses exegetas! É preciso cuidado com eles. Deixo de fora os verdadeiros amigos, esses não erram nunca.

Vou direto ao assunto: os tempos modernos não nos permitem mais extensas divagações. Ou escrevemos em meia página toda a nossa angústia, que existe desde o primeiro bang-bang. Vejam só, sinal dos tempos, nesse intenso tiroteio que vive o planeta, escrevi bang-bang, ao invés do correto “big-bang”. Não consertarei esse erro, para que notem a sinceridade das minhas palavras.

Prossigamos, sem mais delongas! Descobri que não podemos viver com uma alma apenas, mas para que sobrevivamos com menos sofrimento é preciso ter, no mínimo, uma dúzia de almas. Fernando Pessoa descobriu isso e pôde viver melhor com seus vários heterônimos . Os analistas por causa disso o tacharam de esquizofrênico. Ah! Esses exegetas!

Fui até Portugal, lembrando do Pessoa, mas temos um exemplo bem perto de nós, o nosso Machado de Assis, embora tenha mencionado apenas duas almas. No conto , “O espelho”, através de seu personagem Jacobina, ele nos ensina que temos duas almas: uma interior e outra exterior, uma não vive sem a outra. Mas não estou interessado nessa discussão de qual seria a melhor alma, ou se podemos viver apenas com uma, sem o perigo de morrermos.

Não, amigos. O conto lindíssimo do Machado fala, se entendi bem, do que modernamente chamaríamos de eu interior e o eu exterior, o eu da sociedade.

- Mas afinal – dirão os meus impacientes leitores - percebendo que já gastei quase uma página inteira. O que aconteceu de tão importante?

Responderei, embora aflito, num esforço de síntese: é que tinha realmente duas almas. A alma caseira, conhecida da família, e a alma do incipiente escrevinhador. Pois bem, nessa de escrivinhar prá lá e prá cá, começou a nascer a alma do trovador, ainda claudicante, possivelmente com necessidades especiais.

O leitor, arguto e generoso, dirá: “Mas qual o problema? Eu lhe darei a mão, como um bom guia de cego”.

Esse o problema, ninguém tem mais tempo pra guiar ninguém. E foi o que aconteceu. Dando os primeiros passos, os poetas não me ampararam. Aflitíssimo, depois de um longo tempo esperando socorro, escrevi, às escondidas, para uma poetisa carioca. Atentem para o detalhe: carioca! Gritei: “Sinto-me órfão!”.

A minha terceira alma vinha ao mundo nesse estado: inválida e órfã de pai e mãe.

Finalizo, finalizo. Tenham um pouco mais de paciência, quero apenas deixar o meu recado. Amigos, por falta de atenção, levamos uma vida inteira e não reparamos que nascem várias almas dentro da gente e se alguma delas morre, outras tantas sobrevivem.

No momento, estou com três almas e já nasce uma quarta: a do humorista.

Deixem que suas almas nasçam também, pois assim retardamos por mais tempo a morte inexorável.