AMIZADE FAZ CARDOSO VIRAR MOTORISTA
                  HISTÓRIAS DE ANGOLA
                    BASEADO NO LIVRO
 “
À SOMBRA DO IMBONDEIRO” DE ANTÓNIO MARCELO
 

            Cerca de 60 anos passados. Tinha apenas 10 anos de idade. Meu empregado Cardoso queria estudar, aprender a ler e escrever para tirar a carteira de motorista, em Angola chamada carta de condução. Ele era africano de pele bem negra, mas meu fiel amigo e admirador.
Os colonizados que não tinham direito à cidadania, não tinham Bilhete de Identidade (RG). Eram obrigados a usar um cartão renovado mensalmente, que devia ser diariamente assinado pelo patrão. Tinham também que pagar o imposto indígena. Se fossem apanhados na rusga (blitz) sem os dois requisitos, eram presos. Depois disso, ou eram encaminhados para obras públicas ou para serviços domésticos.
Para se tornarem "cidadãos portugueses" havia alguns requisitos imprescindíveis: serem católicos, terem o exame da quarta classe, falarem português e terem costumes civilizados. Além disso, dependiam da boa vontade da autoridade que lhes fosse conceder o Bilhete de Identidade, sem o qual não obteriam a licença para guiar.
Com objetivo de ler e escrever, dedicamo-nos com afinco, ele aprendendo e eu ensinando.
Com esforço e dedicação, bem diferente de Lourenço, e contando com a ajuda de minha prima, professora primária, o Cardoso prestou exame da quarta classe e foi aprovado. Esse foi um dia muito especial para todos os que se envolveram na tarefa: para o Cardoso, para mim, para minha mãe que acompanhava o desenrolar dos acontecimentos, e para minha prima professora Maria da Luz.
Alcançada a meta e preenchidas as exigências, Cardoso se inscreveu para obter a carta de condução.
Que grande desilusão!
Tanto trabalho em vão!
No departamento de trânsito foi-lhe explicado que só a quarta classe não bastava e que o mais importante era o Bilhete de Identidade.
Novos esforços se concentraram para conseguir o Bilhete de Identidade que lhe daria também a cidadania. Porém, o atendente da autoridade administrativa, racista e desumano, o informou que para obter o Bilhete de Identidade era necessário prestar o exame de admissão ao Liceu.
Era um exame difícil, que apenas uma minoria de nativos costumava fazer para prosseguir seus estudos.
No Liceu o informaram:
“Para fazer o examede admissão ao Liceu você precisa de Bilhete de Identidade.”
A roda da maldade burocrática do poder colonialista se fechava, impedindo que Cardoso se tornasse cidadão.
            − Minino, não fica triste. Quem sabe o homem se enganou. Deixa que Nzambi (Deus) resorve. Um dia a gente vamos conseguir.
Não me conformei. Falei com os meus pais sobre a injustiça que estava vitimando Cardoso.
A intervenção de meu pai foi decisiva: um chefe de posto (autoridade colonial), nosso primo distante, analisou o caso e concluiu que havia uma interpretação errônea da lei ou, provavelmente, má vontade, senão maldade do branco do departamento administrativo. Resolveu o problema, conseguindo o Bilhete de Identidade sem o exame de admissão ao Liceu.
De posse do documento, Cardoso tirou a carta e virou pessoa importante: cidadão e motorista.
Meu pai o empregou na fábrica de papel como motorista entregador de pedidos.
A minha amizade por Cardoso permanece até hoje. Será que ele sabe?
 
 

ANTÓNIO MARCELO
Enviado por ANTÓNIO MARCELO em 20/02/2011
Reeditado em 04/08/2011
Código do texto: T2803218
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.