EL NIÑO

Não chove há muitos dias,há muitas semanas, três meses quase. Inverno tropical de termômetros atarefados, oscilantes entre vésperas de sete graus e dias seguintes de trinta e cinco. A umidade ambiente é de 10%.

Estamos, por assim dizer, secos, feito uva-passa. Nossa condição aquática protesta alarmada.

Escolas fechadas até a próxima chuva. Hospitais, à beira do próprio colapso, congestionados por vítimas de desidratação, disenteria amebiana e problemas respiratórios. As plantações, parcialmente comprometidas umas, totalmente perdidas outras. A paisagem é amarelada e estéril. Árvores nuas, braços estendidos ao alto, pássaros invisíveis, cachorros de língua quilométrica nas ruas poeirentas. O gado anda magro, ruminando a memória de pastagens verdes, alto grau de alucinação bovina.

Por toda a parte, gentes, árvores e animais são bocas abertas ao céu em grito uníssono.

Estação das queimadas. Todo o cinturão rural do município e dos municípios vizinhos está em chamas. Voracidade dantesca, parece que o fogo vai engolir o planeta. A fumaça densa envolve a cidade num véu cinza sufocante. O ar é pesado e dói respirar.

No céu, o sol, espantosamente próximo, inclemente vermelho-brasa. E nem um fiapo branco, um projeto de nuvem sequer.

Não há outro assunto. Nos bancos, nas lojas, nas bancas de jornais, as queixas multiplicam-se. Pessoas desconhecidas olham-se com mais atenção e cumprimentam-se na intimidade de quem se sabe no mesmo inferno. Mal contidas em seu estoicismo, medem, nas reações dos outros, a possibilidade de um primeiro gesto de pânico. Sem saberem, antecipam diálogos e medos, precursores de diálogos e de certezas, futuras décadas além, mas não muito.

O país todo, o continente inteiro, tudo entregue aos desmandos e imprevistos da natureza em fúria. El Niño, corrente de ar quente do Pacífico, é o responsável pela traquinagem inconseqüente. É o que dizem. Como criança que é, não responde por estas inconveniências.

Deveria responder por ele, o pai dos novos fenômenos, das catástrofes modernas que a cada ano se superam: o homem. Ele mesmo, insuspeitavelmente o mais irracional dos terráqueos, escreve acabrunhado a Anti-História da História. O feiticeiro inteligente - agora embruxado, taidomídico, poluído, agora alérgico, canceroso, aidético, patético - trabalha com séculos de atraso no antifeitiço das coisas: discute ecologias, floras e faunas e remenda buracos no teto do mundo.

Nas praças da cidade, faz-se a dança da chuva, mas a coreografia é sem graça, e os deuses dormem.

Anabela Bingre de Négrier
Enviado por Anabela Bingre de Négrier em 02/11/2006
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