GOSTO DE SORRIR À VIDA, QUANDO A VIDA ME SORRI

Ontem saí de casa e levei atrás de mim o desejo de sentir a Natureza, o seu ar fresco, encontrar um motivo para sorrir. Estava triste. Sabia que  não seria fácil, depois de uma manhã carregada de nuvens, dentro e fora de mim,  melhorar o meu estado de ânimo. Mas foi o conselho, que sempre dei aos outros, que me fez saír. Havia que dar o exemplo.

Fazia um frio de rachar e eu estava mal agasalhada. Senti-o quando subi a minha rua, mas não queria voltar a casa. Acontece sempre isso comigo. Não suporto voltar atrás. Interpreto sempre a direção que tomo como a que 'sinto' dever seguir e, por vezes, apanho com grandes desilusões ... Mas sou teimosa, quando de seguir em frente se trata.
Na paragem do autocarro, que me conduziria à estação do metro, bem próxima de minha casa, encontrei uma senhora estranha, muito estranha. As suas pernas, cobertas até ao joelho, com meias de lã, estavam cheias de manchas rosadas, talvez provocadas pela temperatura de -1ºC. Uma das pernas, tinha uma ligadura enrolando-a. O cabelo, encaracolado, quase todo branco e muitíssimo longo, estava enrolado sobre si mesmo, dentro duma rede que se estendia ao longo das costas. A sua expressão era impressionante. Sisuda e com cara de poucos amigos, não olhava para ninguém. Senti uma tentadora vontade de perguntar-lhe o que se passava com ela. Mas não devia, porque a sua atitude era a de quem não estava disposta a dar confiança fosse a quem fosse. Mas eu estava muito impressionada. Aquela senhora parecia abandonada pela vida que passava por ela sem a notar, sem querer saber dela, deixando-a receptiva a uma desistência, em qualquer instante. Isto era o que eu sentia, olhando para ela.
Chegou o momento de eu deixar o autocarro. Entrei na estação do metro, insatisfeita, pensando naquela pobre senhora, a quem não passei, sequer, um sorriso,  uma palavra amiga, ou um pouco daquela força que tantas vezes tenho a mais. Mas eu tinha de continuar o meu programa, portanto, saí na 10.ª paragem.
Depois de voltas e mais voltas, seguindo o itinerário pré-estabelecido em casa, fui ao Banco, suportando uma fila que me deixou quase sem tempo para fazer muito mais. Não será difícil perceber que continuava sem vontade de sorrir. No fernezim de cada pessoa, que se movimentava pelas ruas como autómatos, eu sentia o quanto o tipo de vida que vivemos está errado. E neste observar que me faz sempre refletir sobre se o que estudámos foi, ou não, suficiente para sabermos o que convém a nós próprios, independentemente da educação que tivemos, eu não deixava de pensar naquela senhora estranha e triste. Todo o seu aspeto denunciava uma vida pesada demais, um 'background' dramático.
Cumpridas todas as minhas missões daquele dia, dirigi-me à estação do metro que me conduziria de regresso a casa. Quando ele se aproximou, verifiquei que, para não fugir à regra ..., em hora de ponta, ele estava cheio de gente, amontoada como sardinhas numa lata de conserva. Não direi como sardinhas na canastra, porque canastra é coisa que já não se vê e,  portanto, chamar-me-iam velha e eu velha não sou, porque ainda aprecio muito a vida. As rugas que tenho são fruto da minha casmurrice de teimar lutar contra os anos passarem depressa, esses vis traidores que ora nos encantam, ora nos desencantam.
Pegando no fio do novelo anterior, eu olhei para o metro e pensei não entrar e esperar pelo próximo. Urgia, porém, regressar a casa, pois iria ter a visita de um dos meus filhos, para jantar e não podia, portanto, deixá-lo na rua à minha espera. Entrei na carruagem cheia de gente, a maioria da qual regressava a casa, depois de um dia de trabalho. Estas pessoas, vítimas de sistemas que conduzem a uma morte lenta e sem melhor saída por arreigado apego ao "Tem de ser assim, é a vida ...." teem, todos os dias, um dia que termina com este cenário abafado e massacrante as quais, na sua grande maioria, nem a leitura dum livro ou dum jornal, gratuito ou não, atenuam a preocupação do quanto as espera, ainda, fazer em casa.
Estava absorvida por este pensamento que, aliás, me invade sempre que - bem contrariada - entro no metro, quando vejo que, em frente a mim, de pé, está a senhora que referi no início do meu texto. Apesar do meu lugar ter-me sido, gentilmente, oferecido por um jovem, qual avis rara que recusa incluir-se no número dos que por aí proliferam, que fazem de conta que não reparam em quem agradecia um lugar sentado, levantei-me e propus à senhora que ocupasse ela o meu lugar. Quando aceitei a oferta do jovem, fi-lo porque, sofrendo um pouco de claustrofobia, receio sempre ser traída por qualquer indisposição e, portanto, necessito de ler qualquer coisa - também eu - para não pensar onde estou. A senhora não aceitou, contudo, deu-se a coincidência (ou não...), de alguém ter-se levantado e a senhora sentou-se, de imediato, a meu lado, sem que eu tivesse percebido se esse alguém que se levantou iria, simplesmente, saír, ou se tinha reparado que esta senhora precisava de sentar-se.
Foi a senhora quem me dirigiu de imediato a palavra, agradecendo a minha anterior oferta. Aproveitando a deixa ..., disse-lhe uma graça e a senhora sorriu. Por sua vez, foi ela quem, continuando a falar sobre o tema gentileza, começou a contar-me uma anedota interessantíssima e que me fez rir com sincera vontade. Não sendo nada pessoa capaz de contar uma anedota com graça, porque quando ela tem graça, antes de acabá-la eu já estou a rir, retirando a graça da surpresa do seu final, fiquei por ali sem juntar, à sua anedota, qualquer outra.
Durante toda a viagem, conversando, tive ocasião de notar que esta senhora tinha, talvez, apenas necessidade de falar, de sentir-se acarinhada por uma palavra amiga, pois da pequena descrição que me fez da sua vida, constatei que vivia só, com um gato a quem chama "Nelson". Lá teria as suas razões ...
Estávamos a duas estações da paragem onde ela sairia. Agarrando as minhas mãos, disse-me:
- Não calcula como foi bom conversar consigo, minha senhora. Hoje saí de casa, mesmo com a minha perna muito doente, para tornar mais leve o meu dia. Tive a felicidade de conversar consigo. Bem haja, minha senhora!
Não quis caír no atrevimento de pedir-lhe o seu contacto, mas ofereci-lhe o meu. Nunca recebi um telefonema seu, provavelmente porque as chamadas que pudesse fazer iriam agravar a sua situação económica que, a avaliar pelo pouco que me disse, é muito limitada. Fiquei com a dor que o seu aspeto provocou em mim, mais ténue. Sabia que os risos e sorrisos que trocámos, durante uma simples viagem de metro, teriam servido para aliviar a solidão que está destruindo aquela vida, lentamente.
Maria Letra
Enviado por Maria Letra em 23/02/2011
Reeditado em 23/02/2011
Código do texto: T2810104
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