A Vingança do mestre cuca

Houve troca de comando no quartel do exército do pequeno lugarejo. Coronel Garcia, novo manda chuva da unidade, homem truculento, priorizava a humilhação no relacionamento com seus subordinados.

Cabo Delamare, mestre cuca do batalhão, usando os poucos mantimentos que dispunha, fazia milagres para produzir boa alimentação. No almoço para recepcionar o novo chefe, preparou um purê de batatas - sem manteiga nem leite - que desagradou o coronel. Chamado à presença de Garcia, Delamare foi ameaçado de prisão caso não melhorasse a qualidade da gororoba. O cozinheiro jurou vingança.

Dezessete de dezembro é aniversário da morte de Simon Bolívar. A história conta que o libertador das Américas morreu de tuberculose, mas o bolivariano Chavez, em seu sonho de mudar o mundo a seu bel prazer, quer provar que Bolívar foi assassinado. Talvez ele consiga, mas isso é outra história. Voltemos ao Cabo Delamare.

O cozinheiro escolheu a data da morte do Libertador para colocar planos de vingança em prática: “Vou fazer este coronelzinho de merda engolir as palavras e passar vergonha”. No rancho daquele dia, o mestre cuca adicionou algumas gramas de Chumbinho, poderoso raticida: “só o suficiente para causar problemas estomacais no batalhão”. Os efeitos haveriam de surgir antes ou durante a formatura e homenagens ao herói sulamericano.

Às duas da tarde, sob sol escaldante, o batalhão, marcado pelos rataplans dos tambores e trinados desafinados da briosa banda de música, marchou pelas instalações militares e posicionou-se frente ao palanque para ouvir o discurso de Coronel Garcia (Não sei por que dão o nome de briosa a toda banda desafinada. Em Boa Vista dos anos 60, a Banda Municipal era apelidada de Furiosa).

O comandante, a exemplo de Hugo Chávez e Fidel Castro, não economizava palavras em discursos. Após o toque de descansar, colocou um calhamaço de 40 folhas de papel sobre o púlpito e, depois de saudar as autoridades civis, militares e eclesiásticas, leu a primeira página. Na segunda, ao enfatizar “estes bravos homens”, ouviu-se um barulho surdo no chão e um corre corre iniciou-se entre os militares: soldado Velásquez, com fuzil nas mãos, mochila nas costas e cantil na cintura, desabou. Nocaute. Três companheiros, a exemplo da música de Terezinha de Jesus, acudiram-no e o levaram ao ambulatório. O coronel, do alto, viu toda aquela movimentação, mas continuou o discursório:

- E usando de força e garra, inspirados em nosso grande herói Simon Bolívar, estes valentes guerreiros...

“Plaft!” Novo corre-corre. Mais um guerreiro veio ao chão. O coronel, vendo o alvoroço, pausou o pronunciamento. Nem bem cabo Robledo foi retirado das linhas por três de seus companheiros, sargento Rodriguez despencou no solo com baioneta e tudo. Quatro homens saíram da formatura para levar o aguerrido e obeso militar à enfermaria. O coronel não entendia nada. Pulou algumas páginas do discurso e improvisou:

- Nada nos ameaça. Nem mesmo forças ocultas hão de arrefecer o hino de vitória e júbilo (militar adora a palavra júbilo) cantado por estes homens que entregam suas vidas em defesa da pátria.

Da banda, um reflexo solar ofuscou por alguns segundos os olhos dos que estavam no palanque e, lentamente, sargento Hérman, envolvido pela tuba, veio ao solo emitindo forte barulho de metal contra o asfalto. Do pelotão ao lado, quatro homens acorreram em socorro do músico e seu instrumento.

Segundos depois, mais uma baixa.

Major Gallardo aproximou-se de coronel Garcia e, baixinho, sugeriu:

- Chefe, é melhor o senhor abreviar o discurso.

O comandante pulou dezoito páginas dos escritos e continuou:

- E assim, companheiros, encerro, enaltecendo estes homens fortes e preparados para morrer pela nossa Nação.

Antes dos aplausos, mais dois homens fortes e preparados vieram ao chão e, a exemplo dos anteriores, foram levados ao ambulatório por companheiros de farda.

Coronel Garcia deu as costas ao seu exército, tomou a água oferecida por cabo Bernardo e falou para o subcomandante:

- Isto é uma vergonha! Se entrarmos em guerra, tudo o que o inimigo tem que fazer é dar canseira. Nem precisa atacar, o nosso exército se derrota por si mesmo.

Garcia não viu, mas antes do toque de fora de forma, oito homens passaram mal e abandonaram as fileiras. Lá no refeitório, fumando um cigarrinho de palha e degustando a oitava latinha de cerveja, cabo Delamare sorria. Sorria um sorriso diabólico. Nos olhos do cozinheiro, um brilho de satisfação.

e-mail: zepinheiro1@ibest.com.br

Aroldo Pinheiro
Enviado por Aroldo Pinheiro em 08/03/2011
Código do texto: T2835886