A armadura nossa de cada dia

Parada no sinal de trânsito por longos 75 segundos, tive a rara oportunidade de assistir a uma cena, pra mim, curiosa. Um artista, que se fantasia de estátua em troco de algumas moedas, tirando a fantasia. Quando a luz verde pulou para a amarela, freei já olhando para o lado e pude vê-lo puxando a roupa pelos pés. A máscara, sobre o banquinho onde ele se exibe ao público, era algo, digamos, barbado e bem cabeludo. No rosto, ainda restavam vestígios da maquiagem recém-retirada.

75 segundos num sinal de trânsito é mesmo demais. E também foi tempo suficiente para pensar no quanto se necessita vestir uma máscara para viver. Pense. Você, quando se arruma de manhã para sair de casa, apenas ajeita o visual ou traveste-se na pessoa que precisa expor ao público externo? Quantos não têm que assumir uma personagem para encarar um dia no trabalho, tolerar um chefe arrogante, defender uma tese diante de uma banca, assistir a um filme no cinema, conversar com o gerente no banco, fazer uma entrevista para um emprego, jantar num restaurante a dois ou com amigos, ou mesmo tomar um choppinho básico?

Recentemente disse a uma amiga que tenho em casa um closet imaginário lotado de modelos variados de armaduras, para toda e qualquer ocasião. Nada a ver com ser uma farsa diante da vida (alías, nada mau, considerando prós e contras desta vidinha às vezes tão descontente com a gente); falo mesmo da armadura da coragem, do empenho, da segurança, da galhardia, da elegância, da educação, da alegria, da humildade, da autoridade, da altivez, do equilíbrio, que deveriam ser virtudes permanentes, mas que infelizmente acabam sendo vestidas de manhã, dependendo do leão que se pretende matar (ah, não, eu não disse isso!).

Acredita mesmo que pensei em tantas possibilidades em 75 segundos? Não, não pensei, mas saí dali pensando. E ainda viajei numa provável história daquele artista, que além das fantasias imaginárias que precisa vestir para sobreviver, ainda tem que esconder o corpo embaixo de uma túnica branca, atrás de uma máscara e com as laterais do rosto pintadas, sob um sol que nem preciso descrever. Ali, de pé, em cima do banquinho, deve ficar imóvel e mostrar aos outros justamente o que ele não é, para conseguir uma grana.

Levando o caso para um lado mais pitoresco (hhuumm), lembrei também das observações que fiz durante o carnaval, nas ruas de Paraty. Algo me diz que falta explicação coerente, talvez científica, para o desejo (quase) atávico que os homens têm de se travestir de mulher. E se aproveitam do reinado de Momo, “quando tudo pode”, para soltar as penas, ou tentar desvendar os tais mistérios da alma feminina (seria só isso mesmo?). Nunca vejo mulheres vestidas de homens, na mesma proporção, aliás, em nenhuma proporção. Nos quatro dias de folia passaram por mim dezenas de “piranhas”, ou mais, com zero por cento de mulher na situação oposta.

Também nas relações sexuais, sabemos do quanto se fantasia para se chagar à satisfação, seja a fantasia com o próprio parceiro ou com desejos inconfessos, escondidinhos lá no fundo da mente, que acabam vindo à tona na hora da transa. Para a psiquiatra Carmita Abdo, especialista em medicina sexual, fantasias sexuais são diferentes para homens e mulheres. “Homens têm facilidade de fantasiar, pois têm sonhos e projetos sexuais que gostariam de executar. Mulheres gostam mais de exercitar sua sedução. Imaginam fazer sexo sem ter uma participação tão ativa, como em um striptease, e ser objeto do vouyerismo masculino. Ser desejada e observada é excitante para a mulher”, atesta Carmita. Portanto, nem no sexo é possível ser puramente livre e leve, sem que seja preciso criar uma personagem, mesmo que mental.

Há textos e frases de efeito que pipocam por aí, nestes tempos de hedonismo absoluto, que aconselham a tirar as máscaras, que os indivíduos devem tentar ser eles mesmos, e blá blá blá. Líderes religiosos ensinam a seus fiéis a assumirem nova postura diante da vida, mais realista, pois máscaras, armaduras e suas personagens, além de pesarem muito ficam por aqui, enquanto a alma deverá subir ao céu, onde irá apresentar-se límpida diante de Deus.

Depois do devaneio se estendeu para mais de 75 segundos, volto à realidade nua a crua, chegando ao meu destino alguns quilômetros daquele sinal de trânsito, sob um “calor tão desumano”, precisando urgentemente fantasiar que estava no Alaska, para ver se, pelo menos mentalmente, conseguia tocar meu dia até o final. E a tarde de sol estava apenas começando. Haja personagens para suprir todas as necessidades diárias.

Giovana Damaceno
Enviado por Giovana Damaceno em 20/03/2011
Código do texto: T2859039
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