UM MURAL EM BRANCO

Durante quase 16 anos escrevi um diário. Há dois anos venho "publicando", diretamente sobre a superfície de parede da sala o que posso chamar de mural, com as fotos e as imagens de fatos e de seres que considero marcantes e fundamentais na minha vida, desde o nascimento. Ocorre que os espaços do mural estão quase completamente preenchidos, sobrando poucos lugares para a colocação de novas fotos e imagens do que venha a me parecer marcante e fundamental daqui para frente.

Partindo-se do princípio que eu não disponibilize outra parede para a continuação do mural, que atitude tomar? Apagar dele os “documentos” do que parecer, agora, menos relevante nos principais fatos e seres da minha vida, a fim de dar espaço para documentos novos? Nesse caso, se eu viver ainda por razoável número de anos e, partindo-se do pressuposto da ocorrência proporcional de novos fatos e de novos seres que se me afigurem de especial relevância, chegará necessariamente o momento em que o mural, enquanto registro do exercício da memória, perderá muito em legitimidade, na amostragem dos eventos deveras significantes de uma vida e apenas diante do olhar desta mesma vida que, a quem mais poderá interessar os registros do referido mural?

Por outro lado nada impede que eu dê, neste momento, o trabalho por encerrado e congele o mural da parede, imobilizando o tempo antes de sua imobilização natural e irreversível. Também posso retirar-lhe, do mural, todas as fotos e imagens, zerando os registros até aqui. Certamente, isto será um tanto trabalhoso e, em consequência, a parede se veja descascada em alguns pontos, até mesmo perca algo do reboque em outros. Sem dúvida, será preciso refazê-la e pintá-la novamente, a parede. Surgirá então outra, em branco, como uma vida em branco, talvez vida pronta para se redesenhar inteira de novo.

Seja como for, urge completar o ciclo do mural (não o sinto ainda completado) como se completou o ciclo dos diários. Depois de completá-lo, ao presente ciclo, estarei apenas diante do meu mural interior e a tarefa será limpá-lo, torná-lo, esse mural interior, branco das imagens marcadas a ferro e fogo do destino vivido até então.

P.S. Levando em consideração o pertinente comentário da leitora Millarray, gostaria de acrescentar algo para clarificar melhor o significado deste texto: Millarray afirma, com toda razão, não ser possível tornar branco o mural,que nada do vivido pode ser apagado (eu acrescentaria que só pode ser transmutado,nos seus significados em nós, se tal o quisermos e pretendermos).

Quando me referi a mural interior em branco, eu pretendi dizer que gostaria de me colocar, a partir de certo momento da vida, como uma criança diante do tempo ainda não vivido, que toda criança vive em estado de virgindade, em estado de "mural em branco",diante do real.

Cara leitora Millarray: agradeço, fundamente, por sua leitura e por seu comentário a este texto.

Grande abraço da Zuleika.

Texto iniciado no final do dia 21 de março de 2011.