TRINADOS DE DEZEMBRO

TRINADOS DE DEZEMBRO

Cresci em total harmonia com a natureza e assim aprendendo a entende-la em seus mais ternos recados: Ventos que arrastam histórias,tardes que arquivam solidões de passarinhos,marcelas de abril...sabiás e guabirobas em dezembro.

Era meu pai,com seu lirismo caboclo,quem incutia-me certas “sutilezas” tão inocentemente singelas,que por assim o serem passavam (passam ainda) desapercebidas à maioria dos seres.

Dentre tais “sutilezas”,talvez aquêle seu olhar em “dezembros” tenha sido a que mais me marcou.

Aqui no Sul,a partir de setembro a paisagem castigada de inverno vai,aos poucos, se renovando.Amarelam-se os ipês,os charcos iluminam-se às milhares de margaridas que erguem-se em louvor ao sol da estação.

Em outubro costumam reaparecer os primeiros sabiás abrindo manhãs raiadas no morno da primavera e lacrando tardes amenas até que araucárias levantem-se em taças a brindar as primeiras estrelas.

Numa incursão pela mata,há décadas passadas,trouxe algumas mudas de árvores nativas e as plantei no meu quintal.Uma araucária,minúscula e espinhosa,uma Tarumã,um cedro,e...Uma guabirobeira!

Enfileiradas à beira de um pequeno riacho que passava aos fundos da casa,os vi crescer e acalentei o sonho com o dia em que “ sabiás viriam saboreaor os frutos e, como forma de agradecimento , entoariam os trinados de dezembro”.

O tempo corre,mudam-se as situações e numa destas mudanças acabei desfazendo-me da casa em que morava.Mudei –me para outro endereço,com uma estrutura um pouco melhor,mas ...Distraído como sou,acabei esquecendo meu coração naquele quintal.

O atual proprietário,um velho conhecido,tal como eu é um amante da natureza.Vivemos as nossas infâncias num mesmo local e dividimos,harmonicamente,é claro,o mesmo território.Fomos senhores da plenitude verde e encantada da mata,dos frutos colhidos nas árvores,dos campos lavados de chuva e...Amigos dos “cantores de dezembro”.

Um reencontro destes que a vida costuma alcovitar,nos colocou frente à frente depois de tantos anos.Em meio à conversa,falamos da casa que lhe vendi,hoje substituída por outra,moderna e bem estruturada e do inevitável:O quintal!

Perguntei-lhe sobre as árvores que eu havia plantado.A resposta foi tão sòmente:”Tôdas crescidas,belas,frondosas.O pinheiro certamente produzirá pinhas já no próximo ano,as outras estão também muito altas.Porém a que mais aprecio é a guabirobeira:Gosto de tomar o meu chimarrão na varanda,ouvindo sabiás cantando e se deliciando com aquêles frutos.

Tem tudo à ver com a nossa infância. Lembra-se? Aquêle tempo de férias de escola,a espera pelo natal e aquela liberdade impagável sob um céu de anil.

Fiquei sem palavras.Os olhos,certamente,falaram por mim.Vi naquele momento o rascunho de uma história que escrevi,passado à limpo com alma e coração.

Despedimo-nos.

Um aceno ,a batida de portas e um carro distanciando-se.Em mim,a doce sensação de saber que “nem tudo fôra perdido”.